segunda-feira, 23 de março de 2015

Definição

Aparece-me no sono. Um vulto, uma presença. Enquanto a obrigatoriedade da vida transita e apenas a respiração é certa, ou quase. Flutua no argento da lua, nas camadas do tempo. Com algumas doses de insônia e desrazão. Essa fibra que faz meu pai decorar muitas páginas e se corresponder com a gente declarando seu amor. É uma coisa, latente. Um fungo, quem sabe, uma erupção de pele. Essa marca tão funda me fica nos olhos, transbordados de alguma forma quando eu a digo. Estou no carro dirigindo preocupações quando ela chega e me faz ri. É fêmea, frutífera, uma lança quando em vez. Alcança o pátio da antiga casa e farfalha indiscernível, um garimpo de vozes dentro da saudade. Aparece-me na estrada. No meio do rio. Quando sigo sem destino, fugindo dela e de minhas responsabilidades. Quando sou mais eu e menos mundo. Mais próximo do eco das galáxias e das desimportâncias dos sapos, das corujas e sua literatura de ave. Liga-me ao que é mais real. O corte pelo acidente, a árvore que foi decepada, a história com mais versões que vencedores. Mete-me em curto com a energia que me trespassa e anima. A poesia me funde com tudo de uma vez. Povoa, projeta, vitupera e escarra. Põe palavras em minha boca que é sua função. Fá-las escorrer para o branco da página, que é seu vício insuperável e me corrige das insuficiências, dos desesperos por que passo em ser apenas um homem diante de um mundo de homens trocando-se por patacas ou minerais. Mas, sobretudo, não me deixa no desalento do quarto, surrado com dor de cabeça pelo que não se pode voltar. A poesia me viola. Fecunda. Abre as juntas e os alicerces e refaz o imponderável. É do seu impossível que me alimento. Torna-se qualquer coisa. Qualquer idade. É esse vento que sinto agora perto do mar. É o beijo desesperado da partida. São meus avós sozinhos no natal de 92. São as pernas em falsetes de quem se esforça às muletas. É o lítio, a venlafaxina, os benzodiazepínicos dos quais saltei. Promove litígios. Fez-me perder a mulher certa. Deu-me outra possível. Posso fatiá-la, tê-la em redondilhas ou canções. É a língua que me opera e induz. Lida, corpo, demência. É tudo de exceção no que não tenho. Tudo quanto posso quando a dor é demais. J.M.N.

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