quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Minha única outra pessoa e o perdão da vida inteira


Para o meu filho Cauê dos Santos Mattos, a melhor pessoa que conheço.

Em cada mínimo dedo meu havia uma dor de fratura. Encharcava, ardia, rasgava em cada veia, em cada feixe nervoso uma violenta tempestade. Minha boca que acordara banhada de um astro logo logo adormeceu, como que para sempre. Nenhuma palavra eu daria à luz porque dentro de mim havia um deserto de sentidos, de significados. Escuridão de erro e descuido. Havia um ato de contrição inscrito, por cada ano de minha idade, por cada número de meu registro civil. Eu era simplesmente frêmito e ocaso. Como não faltasse mais nada a que se debridar em minha musculatura, houve aquele aceno de morte, aquele olhar de desgosto. Como tantos que já vi. Uma lança em meu peito. Senti-me um fracassado. O desalento do meu dia culminou em lembrar exatamente de cada uma das vezes em que fui ferido. Cada momento de fúria em que dispus de minha autoridade infundada para dobrá-lo e, pretensamente, chama-lo à realidade. No mesmo momento porém em que tive de lhe dar a mais triste das notícias, ele me veio com a salvação própria das pessoas iluminadas. Com a força titânica daqueles seres que antes de virem ao mundo, receberam o tato da bondade e a língua delicadíssima da compaixão. Seu olhar não trazia raiva, frieza. Não era o olhar de alguém que estivesse destroçado. Ele me olhou bem no fundo e disse para eu ter calma, todo mundo erra, não fica assim. Dentro de um luto potentíssimo que se instalava como por algo que jamais me viria sequer como memória, seu perdão nasceu e benzeu toda ferida e toda tristeza que me inundavam. Sua mão na minha, reprogramou a bomba relógio na qual me tornara. Mas houve explosão. E o alastrar dessa explosão foi de conforto. As ondas de impacto reacenderam cada carinho que eu recebera em vida. Uma memória quase mítica e reveladora. Num único gesto, em uma única frase, aquele menino mostrou o tipo de homem que ele é. Mostrou-me o tipo de amor que tanto nos falta pela vida. Ele não será uma pessoa de bem. Ele já é. Minha boca acesa, de mil astros ensopada, novamente festejou. E pude dizer-lhe que tinha orgulho em ser seu pai, que não aprenderia com mais ninguém e em tempo algum o que ele me ensinou num único minuto de fraternidade. Diante do gesto dele, não há outra possível coisa a fazer, senão lidar com tudo, até que eu mesmo me perdoe. Se esse tipo de irmandade é possível. Se esse tipo de paternidade filial pode existir. Então, quem sabe, a humanidade tem mesmo a chance de durar. J.M.N.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Da distância entre os acenos

 

Estava naquela casa como quem mora numa certeza. Sabia suas paredes, suas goteiras e seus esconderijos. Sentia-se bem, dizia, e esse bem, no pensar de Zélia, traduzia-se em estar aliviada dos descaminhos da vida, os quais se acumulavam em seu íntimo desde os seus primeiros choros. Desde as dores do parto de sua mãe. Era como um azedume que reaparecia com uma frequência não desesperadora, mas incômoda. Era tipo um alheamento, um esquecer-se de si.

Por isso engoliu várias respostas possíveis até pronunciar um não faminto e esquálido ao gesto do Cizico. A mão pousada em direção ao céu convidando-a para um passeio de barco, com provisões suficientes pra não voltar naquela vila. Ele a queria por perto quando se abrisse a boca daquela primeira curva do rio. Aquela curva respingada de filhos de seus irmãos, de panelas de sua mãe e lembranças do seu pai. Aquele rio que tinha cheiro de pessoa idosa. O cheiro do seu avô, pescador dos bons.

Zélia não veio. Apesar de saber que seus corpos se sabiam de uma forma tão perfeita que parece que Deus pessoalmente veio talhar o lugar de encaixe. Cizico iria sentir falta da sua comida, dos seus sucos e da sua forma de deixa-lo incendiado de ciúmes. Zélia nunca mais veria um amor nascer bruto de uma raiva provocada pelo silêncio dele. Cizico queria estar no meio de algo vivo e corrente, mas ali, no colo do rio, enquanto durasse seu navegar, inventaria preces e bênçãos pra que aquela água o fizesse esquecer o tanto de sua carne que deixou por baixo das unhas vermelhas daquela mulher. WDC

Exegese à moda de um canalha

Este ano já não trocamos mensagens de aniversário; as de boas festas possivelmente não chegarão. Teremos árvores de natal, felicidades. Cada um em seu canto. Ganharemos presentes e votos de um ano bom. Os que ofertam, não sabem das alianças escondidas – não esquecer. Daqui pra frente teremos, finalmente, duas vidas exclusivamente nossas. A de cada um, em seu tempo preciso. É uma merda dizer isso. Constatar. É tão odioso que não assines mais o meu jornal. Que todos por ai digam que sofres de exílio. Este ano já não lembrei direito do rosto dos teus pais, da estupidez do teu irmão. Não gravei mais nada em meu corpo. Fiquei pensando nos teus bichos enterrados no quintal. Às vezes, em meus romances escritos de maneira tão imprudente, registro que eu devia estar lá. Junto deles. Para que a terra me comesse. Morri exatamente em três de abril de dois mil e seis. Foi quando tive de vez a tal compreensão. Eu me encontrava preso, como o poeta que avista a Terra em uma fotografia. Vi meu mundo tão pequeno e impermeável naquele quarto da residência. Eu já estava acabado. Eu devia ter tido um enterro. Devia ser um defunto. E assim talvez, mas só talvez, não tivesse que comer a terra de tantos caminhos, sorrir dizendo que não me importo, seguir sentindo que já não tenho lugar entre os bons. É terrível que eu continue vivo. Entretanto, ainda tenho esses botões que premir, essas linhas a me socorrer. Posso confessar que vivi. Posso até te dizer muito obrigado por não confiar mais em mim. J.M.N.

Pedras de papel e poemas Teutões antigos

Assino: coisa. Simples assim. Minha substância acabou mais que depressa quando saí da aldeia. Fui-me enchendo de mundo, do cheiro dos abraços de pessoas que nunca mais iria ver na vida. Costurei minhas roupas feito alfaiate. Meus ternos foram feitos para durar. Minhas peles para esfoliar de quando em quando. E acontece que era eu atirando aquelas bolas de papel no parque. Para te acertar mesmo. Se abrisses uma delas que fosse, verias tantos monólogos impróprios: conversas com meu corpo, sujeiras para as mulheres da noite, abelhas nos ouvidos para cooptar raposas. Infesta-me essa civilidade perfumada da gente. Acaba que nunca acabamos. Apenas dissemos o que precisávamos naquele momento. O ponto final nos haverá senhores idosos, acho eu. Tantos rascunhos por terminar e ai, te vejo comprada com ursinhos de pelúcia. Queria ser tão simples. Ou simplista? Dane-se, no fim das contas a horda passou ao que somos e um dia o que somos passará a outra coisa. Assim caminharemos. Espero não estar mais. Por hoje chega. Não te ofereço nenhuma mais palavra. Tem só um verso escrito em maio ou janeiro, já não sei. Em resumo ele diz que posso seguir em frente. Isso mesmo: autorização pessoal. O que diz suas rimas? Quem disse que poemas desse tipo – libertador – tem que ter rima. Lá vem você com seus esquadros. Até mais! Com minhas próprias palavras. J.M.N.

Agora que acabou eu começo

Agora que acabou eu começo tristeza
Quais coisas me pedes? Um terno? Um pente?
Minhas abotoaduras de ouro?
Não reconheço essas dívidas que apresentas
É um fim de vida que não houve amor
Não é a minha. Contradições sim, desterro...
De onde vens com esses vilões de preto?
Vi que te acompanham com as bocas secas
Beberam tua água, tuas lágrimas, teu suor
Como te revelarás humano?
Não urinas, não choras, não resfrias
Agora que acabou eu começo a dizer
Diante do que fomos, fui muito pouco
Ainda faço todo o expelir de meu corpo
E ácido me onero com a eternidade
E furioso me reconstruo com o que sobrar
E tendo sido acusado:
Espero passar os anos para que sintas
A culpa é um peso de dois fardos

J.M.N.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Show Antônimo e o Nome da Coisa

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De volta a Belém, esta semana, depois de dois anos de ausência initerrupta, o músico Antonio Novaes mostra ao público paraense a fusão de dois projetos que foram criados em São Paulo e na Europa. “Antônimo e O Nome da Coisa”, mais do que isso, será para ele uma celebração, pois vai reunir antigos e novos parceiros no mesmo palco. As cantoras Ana Clara Matos, Gláfira Lôbo, Aíla Magalhães e Juliana Sinimbú e os músicos Patrick Florêncio (baixo) e Artur Kunz (bateria) estão confirmados. Além deles, o show ainda conta com participações especiais das guitarras de Renato Torres e Tom Salazar Cano. O show começa às 20h, no Teatro Gasômetro – Parque da Residência (Av. Magalhães Barata – São Brás).

Texto integralmente retirado de: Holofote Virtual

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Quando toda a razão cabia nos vídeo games

Acontecia entre os estragos da casa. Ele se arremetia, sempre que o pouso indicava perigo. Ia aos carros forjados de sua imaginação, andar por ai entre Limoges e Malibu. Muito próprio ele era de ser julgado o agressor, o puto. Aquele que esfregava em suas caras, o que não suportavam. Era ele, sim. Ele o malfeitor de empregadas e adorador de mantras. A despeito de altas malícias, a casa cheirava a prosperidade. O odor enganoso da vitória. Havia alguém empurrando outro alguém goela abaixo constantemente. A loucura sempre arranja um jeito de procriar e vencer a normalidade. Não havia infortúnio pior que os abraços. Antes de mais, voltemos a ele, o inútil: sabes qual será teu fim, não é? Era isso que lhe impunham. A pergunta respondida pelo medo de ele vir a ser o que não coubesse no alhures de suas simpatias, de suas dulcíssimas invalidezes. Estes programas de hoje que repetem infinitamente que podemos. Autoajuda refrescante e idiota. Era ao que vinham uns aos outros. Ajudar-se a sentir, viver, destruir as vontades fundantes de todos. Ele esperava o almoço passar. As duas mais odiosas horas do dia. Todos à mesa, contando o que não puderam vencer. Calados e sorvendo o sal da carne de panela. Ele acometido de impossíveis. Quieto e ardente, trocando sinais com a menina da vez enquanto servia-se de arroz. Violador de normalidade era o que ele era. Ainda bem. E quando o ritual desimportante acabava ele sorria. E sempre que perguntavam, respondia ter-se lembrado de uma piada. Seu jogo perigoso começava. Um desafio no qual seu caráter se fundara. Quando aquilo passava e as brevidades da fome cessavam, viam-no rindo em frente aos seus jogos eletrônicos. Disperso vivente entre os sufragados. E quando insistiam em saber se ele estava bem – perigosíssimo ele atirava: acabei de perder duas vidas, e você? Aprendera desde muito cedo a dizer a verdade, acima de tudo. J.M.N.

Trilha sonora…

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Nós os dois e a vida inteira

Isso não se ensina na escola. Tampouco a vida nos ensina. Não há manuais, compêndios e ainda assim, tema mais que conhecido, pertencimento. Ouvi essa saudade como uma dor de vento que me entrava ouvido adentro e fazia silêncio em todo meu corpo. Esse vazio desconcertante que não engolia a mínima desculpa. Explicações jamais seriam suficientes. Estávamos lá. Nós os dois. Terríveis, cercando cada qual com mais e mais carinho e entrega, paixão e velo. Entupimo-nos. Não era assim? Aquela nossa concepção falha de totalidade. Eu me pertencia mais do que a ti e por isso, quando me tomaste, fiquei sem pertencer a ninguém. Coisas soltas que completavam então: ver um filme sozinho, leitura em voz alta, alguém chegar e dizer – que lindo que tu és. Saber-me estranho a ti era uma aventura. Curtia aos montes. Nunca desisti do egoísmo. Essa parte pendente de todos nós, a solidão. Ora querida, ora amarga, odiada. Referida como a desgraça maior. Para mim o último degrau de mim mesmo. Não a detesto, não conviveria com ela se não fosse tua lembrança. A vida inteira estava ali, diante de nós. Acho que, afinal, tínhamos algo de diferente. A noção de vida, a fração inteira. Ou então era isso: não nos cabia uma vida inteira, apenas nós dois – enquanto durasse. Enquanto o infinito não viesse nos cobrar seu empréstimo. J.M.N.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Que assim seja

Fúria minha, livrai-me da ternura e de qualquer outro sentimento que faça o coração pulsar azul. Dai-me a tormenta e a guerra. Sem trincheiras, por favor. Quero me preencher com uma química que não deixe sobreviventes ou significações. Hoje só quero o amor como pretexto pra uma lascívia qualquer. Abre dentro de mim uma senda sem retorno, uma clareira sem pousos, uma varanda sem cadeiras. Desmonta o que o processo civilizatório fez de mim e faz-me desejar a solidão como quem se lança ao mar. Quero ser a ilha vazia onde nasci. Ser menos que nada nem flor pra se cheirar. Quero estar apartado de tudo, inclusive da história compartilhada. Inclusive do tempo em que fui tão de alguém que não sobraram narrativas contáveis que forjassem, em amarelo artificioso, um final edificante. WDC

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Escrito para excluir solidões

Lá vêm as vespas todas zunindo. Enchendo cada centímetro do ínfimo ao redor com sonzinhos de peito cheio. Gritos de presença. Lá vêm as lanchas riscando os rios, lá vêm deixando-se depois de irem. Seus rastros nos quais meu olho se esvai. Meu mundo líquido é de dentro e de fora. Corre em mim, incorro nele. Lá vêm as pessoas da família e seus ancestrais e histórias. Lá os vêm dependendo uns dos outros, seus risos, seus encontros esparsos. Não saber se podem amar. E depois aquele silêncio queixoso de quem sabe que nada será como antes, mas pode ser muito bom de vez em quando. Lá vêm meus irmãos todos juntos como em um retrato cantado – se houvesse. Aquele de sangue, os que escolhi e os que me escolheram. Lá vem a frátria animada, pronta para vendavais. Garrafas secas deixadas, muita esperança sorvida. Filhos, afilhados, orações pela vida – os irmãos já estão. Lá vem a vontade do tempo, reinando sobre tudo quanto vive, reinando sobre meus risos, minha pele que descansa das mentiras e se solta, cheias de traços e vícios – minha pele demais usada. Lá vêm as marcas do amor. Todas juntas em dias de ócio, todas duras em dias de mágoa. O que fica não é mais que um pó fino sobre as coisas vividas, o pouco pó do esquecimento diário. E o que se leva daqui deste assoalho terreno senão a biografia contada por outrem, fomes decorando a mesa, os conselhos de tantos, os senões de nós mesmos? Nada cala se há uma palavra para ser dita, se há razão em dizê-la. Se há uma solidão por perto, daquelas que quer comer tudo sozinha. J.M.N.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Porque ela chegou tarde demais

Ela veio quando eu já tinha pernas e braços, podia morrer por ai, enlaçar corpos potentes ou fracos demais. Ela chegou depois que a maior madrugada que tive, acabou na boemia de um porto egípcio – uma história que nem sei se é minha. Ela veio depois que eu fraudei a receita, andavam me procurando. Carnês de pagamento na mão. Um vexame. Ela chegou tão depois de eu ter sentido o sangue entre meus dentes e, obviamente, depois de eu ter corrido com a carne roubada por ai afora. Ela chegou com sua certeza e finesse muito, mas muito tempo depois de eu ter esquecido regras básicas de convivência, de como utilizar os talheres. Ela chegou bancando a oferta de quem me deixara penhorado. Ela chegou para policiar territórios, muito depois de eu ter me tornado um ausente, um cigano, um preposto de atavismos, de ideais, de eleições do óbvio. Ela chegou atrasada no único dia em que não poderia – minha partida. Sem poder dar adeus ela chegou perguntando se alguém me vira, se sabiam como me encontrar. Mas eu estava lá. Nem escondido nem às vistas. Estava ao seu lado, ao redor de seus medos. Eu estava sendo preciso no que eu sentia e muito maior do que me cabia no peito, meu coração dela se enchia. Mas ela chegou muito tarde. Chegou a mim, antes mesmo de ter chegado a ela. Que longa estrada ela tinha. O presságio me disse que esta imperícia teria um preço. Mesmo antes de ter-se chegado, ela demorou muito tempo buscando as razões de não se encontrar. E sem uma coisa nem outra – razão e tempo – ela ficou perdida, acenando para quem não estava mais. J.M.N.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Nunca é cedo demais para partir

Quando a gente sai gritando de dentro do quarto abrigo, o corpo da mãe deixado de repente, em meio a um cochilo, bem prestes a começar o medo do que virá. A vida vem feito um sopapo, e por essa dor inicial, fundante até, a gente chora. E se acostuma a chorar sempre que perde, sempre que ganha, sempre que a tarde não traz senão a ausência de alguém. A gente já cai vivendo no mundo e espera viver mais depois da morte. A gente espera que a eternidade seja melhor do que a água da chuva explodindo nosso romance, liquidando nosso sono profundo. Nunca é cedo demais andar mais perto de si. A gente fica apertada dentro do quarto da casa. Esperando que a vida invada nossa garganta, que desafie nossos limites e não pare nunca. E se a gente esquece que já está na escada dos anos, na corrida pelo descanso mais quieto que existe? A gente que já tem escaras suficientes aos poucos anos da juventude, ao insulto mais vergonhoso que atiraram – a gente, essa gente de escaras francas e não eufêmicas cai no mundo, segue a estrada. Qualquer estrada que rime: fuga e solidão, saudade e vontade, amor e ódio. A gente segue. E às vezes não escreve pra casa. Não dá notícias em anos. Não é por maldade, por esquecimento, por orgulho ferido, mas pela vida que se conquistou na renuncia. Durante a digestão do impropério, das horas extras de vigília culpada. Razões mil para ferir-se e jogar com a sorte. Nunca é cedo demais para pedir as contas e não querer mais escutar que a sua casa não é sua. Que a presença física é uma espécie de moratória incômoda do que os outros não foram e veem na gente. Nunca é cedo demais para partir. De dentro de alguém para o mundo, de dentro da gente para o infinito. J.M.N.

Trilha sonora… (versão magnífica de Antony para a música de Bob Dylan)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Permissão

A febre não cedia. Ele envelhecia anos sem conta bem diante de nossos olhos. Resolveu pedir. Não queria ficar. Todos ao redor queriam tentar. Ele não. Depois se ficou falando em direitos humanos, processos judiciários, possíveis culpas. E ele lá, dedicado a sofrer tudo por todos naqueles últimos dias. Puxava fraquinho, a beira do vestido dela e ela envolvida na conversa segurava sua mão com carinho, porém nenhuma cumplicidade. Sua voz sumia. Neste minuto o menino entra no quarto. Olha fixamente para aquela pessoa esquecida por todos no recinto e se aproxima. Segura sua mão e pergunta o que ele quer. Um cochicho, um sorriso. O menino se deita ao seu lado. Ninguém repara. A respiração vai descendo até os últimos andares daquele corpo surrado, maltratado pela conjunção de medicina, desencontro e o medo impermutável dos filhos, irmãos, parentes, enfim, que não suportavam vê-lo ir. Jamais lhe perguntaram a vontade. O menino cantava uma música que aprendera e em cujo refrão, havia as palavras céu e azul. O menino ia diminuindo a voz. Muito tempo depois, quando finalmente todos resolveram deixar-se e repararam em quem realmente importava naquele lugar. Viram-no morto. Assustados com a cena, o menino tranquilo ainda cantava, com a mão do doente segura em suas mãos. E aquela imagem de paz inaugurou o fim daquela pessoa dentro deles e os trouxe à verdade da libertação, com uma única e impressionante revelação. Alguém perguntou gritando: o que você fez com o vovô? “Eu deixei ele ir”, respondeu o menino. J.M.N.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Os palmos restantes (ou “ao bater em sua porta”)

Para ela que ainda teme o que se vem repetindo em silêncio.

Hoje eu me sinto bem. Nenhuma nova ruga em meu rosto marcado. Sua descoberta estancando meu envelhecimento. Eu mal consigo ver o seu rosto, porque não tenho mais que sonhar que vens. Estás. Tão próxima e evitando dar mais que um passo de cada vez. Uma prudência que levei tempos para entender. E admirar. Porque dela eu jamais vou beber. Não. Estou do outro lado. Pronto para os passos finais quando chamares. Sempre atento à tua beleza, da qual dizes ser uma generosidade minha. Que seja então. Que seja um qualitativo que imprimo aos ambientes onde estás. Fazes tudo nesses meus últimos dias ser melhor. Simplesmente por não se dar conta da tua influência terrena em minha carne. Esses pequenos segredos que se endereçam à tua lembrança, ao mero pronunciamento do teu nome. E isso, dizer teu nome, faço quase como haja matéria. Que de tão presente e quieta dentro de mim, és, estás aqui. Como tudo que a loucura irreversível apregoa. Nascendo apenas em minhas sinapses, até que possamos enxergar unidos, a um horizonte, a um destino, a um atalho qualquer para a mansidão desejada. Esquecer os amores difíceis de achar e os mais difíceis ainda de manter. Vou caminhar calmamente até tua casa. Suspirar pelas ruas da vizinhança minhas certezas. Roubar hortênsias para te dar no primeiro encontro. Diante da tua porta, baterei três vezes: uma por tua beleza, uma pelo que temo e outra para te pedir abrigo e dizer que estou pronto. J.M.N.

Para ler escutando…

Organismo

Nós éramos uma espécie de líquen. Indivisíveis. Atados à vida das genealogias. Nossas árvores por assim dizer. E que remédio? Pessoinhas feitas para o bom tom das continuidades. Éramos aquele laço bem dado, cego e surdo, que não cedia a ninguém, a nenhuma mão, nenhuma conversa de mau gosto. Comíamos – os dois – o mesmo tipo cruezas. Ela com opiáceos e flores bonitinhas. Eu à moda bárbara, em quantidade e ferozmente. Andávamos de mãos dadas e sutilezas e nossos olhares escondiam nosso horror às pobres almas que não haviam nunca encontrado uma história como a nossa. Até ai, tudo bem, nenhuma novidade. Mal sabíamos que o sabor dos ventos mudaria, que as árvores seriam comidas por pragas naturais e que um dia, nossa mutação evolutiva deixaria a simbiose à sorte de nossa escolha. Foi quando deixamos a natureza simples de alga e fungo e nos caiu soberbamente sobre as cabeças, o peso descomunal de nossa humanidade. J.M.N.

Pressuposto

Pensei que era para avançar com o riso, com a maneira déspota de arrancar um beijo. Fazia semelhança de estarmos os dois na condição de traidores. Essa foi a deixa. Iniciamos o espetáculo. À meia luz, nenhum lugar ocupado na plateia. As mãos vagarosamente requerendo os palmos de corpo um do outro. Avançamos. Tórridos e sorridentes como facínoras depois de um roubo. Parecia que não havia impedimentos. E de repente um muro. A locomotiva ensandecida da busca pelo infinito impossível terminou. Não eram outros aniquilando nosso jogo, destruindo o tabuleiro. Éramos nós sucumbindo à gula. De barriga cheia tivemos que nos odiar. J.M.N.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Para Conhecer Alceu Wamosy

Duas almas

Ó tu que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
Entra, e, sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
Vives sozinha sempre, e nunca foste amada...

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
E a minha alcova tem a tepidez de um ninho,
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
Se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
Essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
Podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha.
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...

Alceu Wamosy – Poeta gaúcho que faleceu em 1923, deixando dentre outros magníficos textos, este Duas Almas, em cujas linhas descobri a poesia sulista mais intimista e casta. Do livro Poesia Completa, 1994.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

You look like rain

Sobre a música homônima da banda Morphine.

Para quando o sabor de alguém te causar espécie
E não forem poucas as advertências para o fim
Quando nada nem ninguém te possuir na presença
E isso for impossível de suportar
Para quando colmeias nascerem entredentes e
O doce das pupas se revelar dentro do beijo
Uma canção de palavras simples, de notas fundas
O enredo do gole do amor indo aos mais distantes
Caminhos do entendimento.

J.M.N.

Da vida vogal

Ela me disse adiante, com sua tenra voz de presença. Seguirei esse caminho, como se fosse da malta que apedreja bandeiras por puro romantismo. Seguirei não por que ela me disse, mas porque me fez engolir o que eu já sabia. Sem tempero, sem gosto. Assim, tão somente quando me abriu os olhos naquela manhã. Ela me disse para ir segurar o sol, com minhas próprias mãos muito pequenas, ela disse. Disse-me ainda que a gravidade de minha fuga era coisa de João Ninguém. E que eu tinha outro nome e que tinha mais substância e que cheirava muito melhor que os homens que foram e jamais voltaram. Eu sonhei com aquilo que ela me disse e que me dourou palavras apenas por que entre seus girassóis da boca cuspiu-me a mínima certeza – não sou menos do que seria se acompanhado estivesse. Ela me disse essa nova medida de entendimento dos meus coitos, de denúncias das minhas vagas. Ela, ela, exonerou de uma vez meu passado. Apenas por ter dito que há futuro. Eu escutei. Eu tomei mais um gole do vinho. Sou eu quem diz agora: adiante! Que enquanto as rosas se despedem da chama antiga, tenho a estepe inteira para vencer antes da morte. J.M.N.

Na calmaria do lago

Sei que tens planos e vidros de perfume para festas. Mas se não te apoio não é por outra coisa senão meu tédio. É odioso eu sei te entregar a verdade assim, tão pontiaguda. Mas me ensinaste a não fazê-lo de outro jeito. Sou eu quem parte o bolo agora. À minha maneira. Que quando me perguntaste se eu tinha noção do que fizera eu fiquei mais pobre, pois achava com força plena que esse tipo de coisa não se perguntava ao carrasco. Mas não fui dono de tua morte, não empacotei teu defunto. Não escrevi homilias para diminuir minha culpa, não. Eu forjei estrelas perfurando meus escritos com essa dor tão pequena e sentida. Com esse enxame de abelhas-soldado pinçando de dentro do meio peito as pequenas conquistas, matando-as intoxicadas e repetindo dolorosamente... cada uma feita em cima da ilusão. Sei que não tenho mais tempo, porém escuta. Será para sempre esse o momento que te revolta, quando passaste a duvidar do mundo a não crer em devoção. A resposta não está no que eu te fiz, mas sim naquilo que esperavas tanto encontrar na calmaria do lago. J.M.N.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Das pequenas coisas imaginárias

É muito infantil o que vou te contar. Chega a ser estúpido mesmo. Uma daquelas coisas que devíamos esquecer e quando vemos, fazem parte de nossas angústias mais potentes. Como errar o nome na primeira assinatura de um cheque, a fortaleza da independência ajoelhando-se boquiaberta – escrevemos o nome do pai. Mas vou te contar. Vou te contar porque o apelo que essa coisa mínima teve foi imenso. Foi vulcânico. Apesar da bobagem da cena e da impossibilidade de agora em ver a imagem acontecida. Vou te contar porque ando pensando que estamos assim os homens todos. Aptos a abrir mão das durezas ou tão categoricamente finitos que tudo que era para dar raiva, engrandece nosso dia. Dá uma energia extra ao frisson do que se imagina possível. Vou te contar como li naquele romance, que se deve dar uma notícia à mulher sonhada – ou amada? Não lembro – de uma vez só, mas, importantíssimo, da maneira mais direta que se puder. Sabes que tenho essa dificuldade desde sempre. Ser direto. É por isso que conjeturei muito e quanto para te dizer o que vi de relance, entre um raio de sol e o atestado de minha vigília, o olho em brasa, recém-aberto. Foi como olhar pimenta ardida que me veio tua escova de dente pernoitar com a minha. Assim, completamente invadido eu fiquei. Como se eu fosse um sósia de mim mesmo e aquela minha casa não fosse minha. Fosse tua, apenas tua e me convidavas. Com essa tua delicadeza indistinta que não quer chegar a ser um traço de personalidade, que não quer a mais ninguém a não ser em tuas culpas. Devastá-las com a força magnífica da tua pluma. És esse tipo de reencontro cá comigo. Que quando beijo esses momentos mais ínfimos não sustento um minuto do dia sem voltar àquela espécie de safra colhida de bem aventuranças que foi teu elemento inventado ou efêmero demais para ser existido. E foi só uma miragem, um golpe clínico da luz em minha esperança. Foi só um teu artefato na minha casa. Num lugar onde as intimidades se consolidam. Foi só essa ansiedade adulta de esperar que venhas e que tragas mais coisas com tuas malas e mais e mais coisas ainda com tua simples presença. J.M.N.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Cartas a ninguém (20.11.2011 – 02:37 a.m.)

Caríssima,

Finalmente descobri teu segredo. Não tenha vergonha. O grito, a mágoa, a pele que arde, serão em breve passado. Descobri mais uma ou duas coisas sobre você, mas elas não importam tanto; não como me importa saber se esperas o fim ou trabalhas por ele.

Pensei muito em teus olhos presos no horizonte da sala, antes mesmo da janela teu olhar morre todas as vezes. É como um peso altíssimo que te prende as vistas ao limite do chão da tua casa. Carrego-o contigo se quiseres. Quando atirares este peso pela janela, verás dignificada, que ninguém mais do que tu mesma, em teu olhar e esperança, o amarrou. Isso dói tristemente, mas saber que nosso limite mora no espelho é a melhor saída.

Não te encontro em bares, nas casas noturnas, não te encontro nos telefones alheios ou nas conversas de corredor. Nisso és boa. Sumir-se. Substituir-se por uma vaga nesse mundo tão desesperado, porém rico. Doente, e por isso mesmo, carecendo de cuidados. Sou eu mais uma vez que te espero às portas dessa clínica. Da enorme tarefa de cuidar de quem não quer ser cuidado. Como nós em tempos idos, estes dependentes merecem nossa mão.

Minha cara, fechar os olhos e não cobrir-se de esperança não é a única saída. Legítima, pois assaz à liberdade sua de desistir, de não dar nenhum passo para fora do quarto, da sala, da casa, de si mesma. Veja bem, esse não é um convite a perder-se. Não é mais que uma mensagem de muito próximo.

Aqui de onde estou, farejo cada vez mais forte sua ousadia entranhar-se no silêncio, sua fúria corpórea aderir a insurreições. Não se apresse para que nasçam teorias, para que claudiquem tuas culpas. Daqui desta breve distância em que me encontro, posso sentir o forte cheiro do teu querer, denunciando-se, vindo em ondas.

A não soltares esses grilhões tão antigos, juro que invado tua morada e arranco o peso dos teus olhos, enfio brasas carne adentro e levo a correr a noite sob as luzes da alegria. Como dois passageiros errantes. Como dois velhos conhecidos da esperança.

Sinceramente,

J.Mattos

Declarações

Para ela, que saiu por ai tão desesperada.

Eu te amo inocência, com o pé atrás de um garoto com suas petecas no bolso, com a esperteza de quem roubou o primeiro beijo na chuva. Eu te amo saudade, com a competência de escrever de comprido tuas palavras, de fazer mais barulho do que antes apenas para não morrer de tédio. Eu te amo loucura, com a mesma firmeza com que amo a pintura de Goya ou as letras de Trotsky; te amo com o mesmo desprendimento de receber uma moeda como esmola, depois de ter perdido tudo. Eu te amo agonia, com a mesma devoção da tranquilidade, com a mesma dispersão do dourado nos primeiros raios de sol, encobrindo o dia, com minhas minúsculas partículas escapadas. Eu te amo ira, com a segurança de quem recebe no peito uma bala, vestido de colete, apenas com uma câmera na mão; essa maneira de guerrear sem disparos, esperando que teus quadros revelem ao mundo o quanto ele anda doente. Eu os amo, por fim, perdão e foice; o primeiro por ter me cedido seu manto, vestimenta calorosa e fraterna; a segunda por ter chegado tão perto, mas ter rasgado apenas uma ponta do tecido que me cobria. J.M.N.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A mesma e única novidade

Essa runa esbarrando em meu tempo sedento
É a sorte emblemática que não nunca me chegará
Que enquanto os vitrais desenho, deixados os outros
Desenham sobre minha história em breu e betumem
Confinamento e vergonha
Serei esquecido por ser teimoso de tanto
Em mostrar ao outro a ferida ainda infeccionada
A carne ainda fedida de toda culpa alternada
De toda a vida contida, de tudo mais infeliz
Serei eu a preparar o teu corpo Solidão
Quando tuas preces senis esvoaçarem fracas
E quiserem mais corpo e tato e língua e ventre
Teus escravos homens, tuas escravas mulheres
Serei eu a sobreviver ao espetáculo, o mundo neon
Escuro e fundo com uma noite por sobre outra
Serei eu este novo mistério indeciso que será a calma
Enquanto expiras a riqueza ilícita
Enquanto foges, rumo ignorado

J.M.N.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Enquanto valer sua entrega

Para ela que não me disse nada até hoje. Que acertou com o diabo as piores desinências para as minhas tentativas, eu cedo. Por ela que corrompeu todo o sistema da entrega, toda a maciez da conquista e refilou tanto a ponto de me encontrar gritando sozinho, eu me oponho. A ela que indevidamente se pautou em amigos, que vasculhou meu passado que assumiu o risco de abrir antigas gavetas, eu calo. A ela que se apresentou tão maior, que recebeu meus sorrisos, que violou suas regras mil vezes em silêncio e quando me pode beijar, correu para lugar ignorado, eu compreendo. Para ela que ainda recita poemas mesmo sem saber, quando passa. A ela que me corrompe de pouquinho em pouquinho os princípios mais aterrorizantes de minha criação e estofo, eu agradeço. Opero meu olho para ter mais horizontes. A ela que me evoca comendo folhas e quer que as divida igualmente. A ela que não toca nada, mas embala sublime meu quase sono diário, eu entrego a escritura. Não de um lugar, uma casa, uma herança. As palavras seguidas que viverão para dizer que eu sou dela, enquanto valer sua entrega. J.M.N.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Gaiola aberta

Meu corpo é meu. Cada centímetro, cada nova ferida. É meu mais ainda em cada troca de pele, a cada renovação de líquidos. Meu corpo sossegado que pouco dorme, pois não precisa. Pouco sangra, pois anistiado. Uma liberdade que não precisa de fugas, conselhos, não precisa de confirmações ou pretextos. Não sou azul como o azul de um pássaro ou de um céu sem nuvens. Sou cor de carne. Cor de sorte e acalanto. Às vezes cor da noite. Camaleão por circunstância, de quando encontro inimigos ou amigos em demasia. Vou mudando de tom. Sem uma voz colorida, apreensiva, às vezes causo repulsa. Vou-me acostumando, nem sempre é de bom tom ser querido, que as pessoas nalguns momentos precisam se ver como são. Providencio as questões mais difíceis. Estás pronta para a vida? Achas ainda que o amor é uma delícia apenas? Se não te ocorreu o acre do desencanto, se as bravatas ainda assolam tua mente infante e as coisas que escreves têm mais parágrafos do que deviam, repensa. Meu corpo é meu agora. Abro o trinco. As grades somem atrás de mim, em pleno voo. Agora posso sair da gaiola e ficar por ai, sem a expectativa de alguém por de trás, sem a força domesticante da espera, da incondicional estadia em si mesmo. J.M.N.

Trilha sonora…

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Tesauro da meia vida

em minha própria memória

Eu te saúdo homem. Como menos se espera saudar a um inimigo. Saúdo a tua tenacidade, tuas advertências, teus desvios de caráter. Não te contesto meu caro. Não me admiro que tenhas tamanha ingerência sobre minha vida e que de tantas pessoas gastas, sejas meu mais fiel inimigo. Te apoio, entretanto. Com a mesma disciplina de amarrar cadarços, de escovar os dentes antes de dormir. A elegia parental do bom cuidado, do autocuidado, da higiene. Limpa-se o rosto, a pele, a língua, as escaras ficam. Te encontrarei num instante, seu demente. Pagarei a fiança, levarei tua roupa engomada na segunda e critérios para gastares tuas economias. Levarei o silêncio da casa. Os retratos vencidos. Os fantasmas cansados que não assuntam, entrementes, suplicam arrego, mansidão de reza e uma ou outra vela pela ex-vida. Te ouço cantar meus roques e tangos, e te vejo escrever os poemas antes de mim. Como se tua mão fosse minha e como se a minha fosse de outro. Te vejo exultar pragas e ruindades, macular a imagem de pessoas que eu amo. Essas tuas telas medonhas que me falam socorro, que quase explicam tua besta crescente. Fecho a janela de agora e não somes. Fujo pelo mar para a jangada de pedra e me segues. Sei que não partirás e que não terás diminuída tua forma de se apegar. Quero que saibas: ajoelho e lavo teus pés e às tuas feridas dou sulfa e carinhos. Não por piedade ou crença, idolatria ou vício. Mas pela certeza de que ao te ver tão deslocado, tão morto em vida, não me és e eu, decerto, não te serei nunca mais. J.M.N.

Era

E era assim que consumava os atos. À revelia, como quebrando abajures, coisas delicadas. Era assim que pisava em corações por ai, com os pés de quem andou sobre ácido, brasa ardente, sem perceber a morte das pegadas. Era como eu fazia festa, sempre ao extremo, sempre ultimado, acordando sempre em novo abraço, pouca ventura. Era como o último sol de fevereiro, anunciando as águas de março que eu evocava minhas forças para me recolher ao que sentia e extrair disso o máximo de beleza acumulada na dor. Era como a cana cortada que eu passava a vida. O que tiravam de mim alumbrava, entorpecia, pouco a pouco adoçava. Era daquele jeito que eu perdia o controle, sempre em tua companhia, carregando estátuas para modelar teus ambientes. Tua cristaleira que não tinha lugar naquela sala. Era como aqueles cristais que eu tinha ganas de despedaçar em mil lágrimas cortantes sobre tua pele. Era assim que eu chorava em silêncio. Fabricado por dedos e bocas muito ladinos, leiloeiros da esperança alheia, aqueles vampiros. Tedioso lembrar esses restos, esse capítulos. Mas faço para aquecer a memória, para aprender. Era de lá que via um lugar quieto, palavras à vontade. Esperavam crescer de algum jeito aquelas palavras. Estão aqui. Estou dentre elas. Dizendo-as, errando-as, tornando-as as vielas do passado. J.M.N.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O que mais?

Que mais nos sorteia entre os esquecidos senão o amor? Que mais em vento vem lufando as migalhas que antes, agachados, procurávamos? Senão o amor, de que vale a aventura de uma vida toda neste mundo e de mil vidas enfileiradas no mundo de lá? E a ti que sentes e não recordas quando flores se abriram à tua chegada, que mais importa? E a mim que farfalho dedos na imensidão da cama a sós, que mais me pode resolver?

O amor de pele lisinha que avançou na chuva. Aquele amor como miríade que vem trilhando caminhos em minúsculos passos um por sobre o outro. Esse todo amor potente que azucrina quando ausente e se empedra mais quanto mais queremos dele soltar os pés. O amor que vem escrito no beijo, naquele arrependimento tão medonho que não sai nunca em palavra – o perdão por si não ama, apoia-se no amor para seguir a luta.

Que mais te fará o bem precioso de um abraço, senão a cobertura corpórea daquele que amas? E a mim o que impedirá suicídios com suas redes de proteção e desafios diários? Se não for o amor, o que mais penderá do teu sorriso quando depois de um golpe fatal, puderes ainda escolher tua casa de para sempre? Onde mais a destreza de nossas culpas falhará senão diante do amor a coser seus retalhos nas costas dos maus feitos, por sobre os erros mais inseguros?

Aquele mesmo amor do homem Cristo que não sei se vem se veio – mas desejo. Esse sustento portentoso que me enchia de medo e fome e agora me sacia comumente. Esse amor de virilidade indiscutível que não recua quando se pede a calma entre as loucuras. O amor que não envaidece e apenas se destina ao centro da gente sem pressa. O amor de uma legião de fugitivos que mesmo imperdoáveis, puderam morrer nos braços de alguém. J.M.N.

Como lutar contra o dragão do desalento...

... arranhando as paredes, com as unhas sulca-las de desespero. Amolando os dentes antes de comer a carne e sorrir este sorriso bárbaro a todos que não forem possíveis de tocar. Rindo o tempo todo de si mesmo e esperar sem nenhuma esperança que todos entendam. Entendendo de antemão o sem sentido da verdade, essa pobre primeira vítima de tantas guerras. Sofrendo até as células e nunca mais trazer à tona tal desgraça, superá-la sendo. Sendo candidato a bandido, a sequelado da família e suportar. Com o vigor titânico de quem deserta. Suportando todas as vezes que receber um elogio, sem defesas possíveis essas armas afiadas do desamparo alheio. Igualando dia e noite e, ato contínuo, ter o despeito de a quem se queira roubar um beijo. Ficando nas citações dos compêndios, entre as teorias de personalidade da academia dos dementes. Cheirando carreiras – ausência e fúria. Testando quem diz ser elementar amar alguém, provar o contrário amando-se antes de cobrir de beijos o alheamento do mundo. Fraudando votos é que se vence o desalento. Indo contra a castidade, saindo em favor de assassinatos. Temendo mais que tudo, não a morte, o confim da semente, porém acordar com a mesma ideia torpe de ontem. Aquela que dizia ser possível morar no outro e não sair ferido. J.M.N.

Para ler escutando…

Posologia

A usar quando for impossível esquecer. Quando naquelas manhãs sem sentido, à porta golpeia a náusea. Nenhuma benesse na alegria. E como não há pinturas, aquarelas ou acrílicos, não há como impressionar o dentro alheio senão fitando-o e chorando longamente. Deve-se inclinar sobre os papéis, os poemas antigos, as coisas que não dizem mais nada e buscar. Não a razão que essa não suporta a convivência, de tão árida e intolerante que é. Há que perseguir a profunda potência de sustento do mundo escuro que são esses momentos. Onde a traição é apenas um dos caminhos. Quando o beijo em boca outra é mais que um coice em nosso peito. A usar de maneira infinita se a noite permite uma vigília cúmplice da dor que a manhã trouxe. E de tanto pensar que é impossível segurar, o sal das lágrimas contamina o ambiente. Há quem diga que isso é doença, protesto deficiente de quem não se suporta. Há quem diga ser a única linha viável, o único escoadouro do que é intangível nos outros. E eu que cansei de esperar respostas e me atirei na imensidão escura do que ninguém mais quererá conhecer em mim. J.M.N.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Consolação

 

Não me pareceram demasiadas as lágrimas que deixastes no meu chão à tarde. Vertidas assim, depois que os olhos assistiram os espinhos das gentes. Gente é mesmo fugitiva de compreensão, escorregadias. Traem a confiança e são capazes de confiarem em uma traição suposta. Alumiam a tua noite e te completam de ausência de manhã. Desembrulham a dor disfarçável, só pelo costume de revelar o pouco que há de desinquieto. Mas hás de continuar, apesar do embaraço impregnar tudo de improvável. Hás de continuar colhendo entre teus dedos finíssimos as flores não repetidas que são o ouro dessas criaturas de Deus.

Um dia, os teus passos esquecerão a velocidade pelo caminho. Então poderás ver que quem supera uma dor já é um artista, pois catou a beleza na feiúra da vida. Se isso não te for o suficiente, encosta naquela tal rua da consolação. Lá tem um velho de olhos muito existidos. Olhos que, quando pousam em ti, te fazem exata. Que, no seu espreitar, produzem um tremor dolorido na tua carne de perfeição declarada. E que ligeiro se aprumam pra te acolher melhor num ninho que está sempre à tua espera. WDC

Paternidade

Ao Saramago, aos meus Josés e ao Cauê.

Uma dose interminável de esperança encapsulada num homem. Ser que espera a redenção do que é impossível ser redimido – obrigar à vida uma semente. Perdão que não surgirá antes daquele endereçado a si mesmo. Perdoar-se até chegar a ser. Eu sou o que sou, mas posso ser outra coisa, caso precises, caso seja necessário meu filho. Pai, filho, a trindade inteira num primeiro abraço. Só o verdadeiro Pai pode isso. Receber alguém a quem ama mais do que aquilo impedido de amar em si mesmo, posto que vaidade. Ao pai, fica a impressão de ter chegado ao paraíso, porque agora tem a quem ordenar afetos e atos para uma vida útil, melhor e maior do que foi a sua. O Pai – humílimo – não se agiganta nessa empresa, diminui-se para dar espaço, para ver escrita a vogal fundante. O caminho do verbo. Utopia sangrada de dentro daquele desamparo eterno, o pior dos medos. E agora, em vez do pai, abraçamos o filho. Nosso filho. Um desejo, uma diáspora. Esse herói mitológico que não sou Eu nem o Outro, entrementes, admirável. Saiu de nós e não deve nos repetir. Não temer isso é próprio do Pai. Sem dúvidas um amor acrescido. Um continente imenso. Medo de não ser capaz. Mas ora, és o pai. Apenas mais um dos irmãos depois do assassínio. E não importa a fúria com a qual o mande às favas seus filhos. Ao Pai instalado, composto por si e pelo perdão, há orações e improbidades, pois em sua grandeza, ele – o Pai – permite ao filho odiá-lo, temê-lo e inclusive voltar com as mãos abanando caso não consiga se resolver, explicar-se – mostra-se. Uma benção ao revés acontece – em nome do Filho, do Pai e de todo o resto do amor eterno nascido do mesmo úbere. Este é o sinal! O filho finalmente aceitou sua vontade, o desejo paterno de continuar-se além da morte, sem pedidos, sem promessas indevidas. Renovação. Estão ambos perdoados, ambos paternais. Pais, enfim, um do outro. J.M.N.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Dibujar esperanças

Assim que ela partiu já não éramos feitos um para o outro. Tínhamos acelerado a escritura do adeus. Doía alguma coisa dentro de mim. E tinha aquele tato dela na minha memória, apertando cada vez mais fraco minhas mãos. Eu fui saindo dela pelos músculos? Tornei-me cansaço? Sentia-me fibrilando. Perdendo o tônus. Ficando a sós com minhas traças. Ia ser comido pelo tempo. Devorado por tudo aquilo que era nulo antes dela me chegar e preencher. Um fosso tão escuro que tinha medo de cair nele. E não me enxergar mais. Esperei que aquilo passasse. E não passava. Fui até a escrivaninha e peguei o bloco de desenho. No primeiro traço perdi o controle. Quando acabei o desenho já tinham uns anos extras plantados em meus olhos. Dor de coluna. Ansiedade. Nenhum medo da morte. Desde que ela partiu eu já não era feito para mim mesmo. Recusava-me. Fiquei nesse impasse por mais uns anos. Ao desenhá-la ensolarada naquela tarde, descobri consternado que não havia abandono de sua parte. Eu próprio tinha virado um rascunho. Uma série de ínfimos planos imperfeitos entre nossos beijos e todas as outras possibilidades de eu ser feliz. J.M.N.

Reizinho

para o Henrique, meu sobrinho, filho do Renato e da Fernanda

Teu nome enorme me expande. Aprofundaste-me sendo ainda de colo. Tive semelhanças ao te ver tão cuidado. E uma saudade não sei de quê. Sei que te erguerás. Essa nossa vida em comum promete ser mais insuperável que a minha com teu pai. Não teve palavras não. Apenas essa sede de te conhecer melhor que tive e com a minha cabeça de agora, essa certeza de querer te levar ao parque para tirar as dúvidas sobre os mendigos e sobre as aves de nossa cidade. Em maior grau és esta cola necessária a algum passado estropiado que tive. Assumiste minha porção de afeto indelegável. Tudo pronto. Chegaste e me tiraste do sono entre meus pares. Minha citadela está completa. Rezo para que tenhas paciência de ser o que a vida te determinar. Estarei por perto. Adjunto de uma função que se nos foi falha aos dois - teu pai e eu. Mas crescemos. E como nos sobrevivemos não sei. Mas estou feliz de que tenhamos conseguido. Ainda não te peguei no colo, não te dei alimento com a ponta dos dedos. Esse tempo chegará. E quando acontecer de me perguntares quem sou eu, terei imenso prazer em te dizer que sou irmão do teu pai. J.M.N.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

A minha versão da saudade

 

As veias puladas da mão que descansa, anonimamente, numa cadeira cujo vai e vem produz o passar da tarde. Precisava vigiar o piscar intermitente do relógio digital, com o silêncio colhido de uma pérola imaterial. 50 anos e a lembrança pegada, daqueles sete meses feitos de acenos e retornos. O gesto sonâmbulo e automático de procurar o corpo dele à noite como quem precisa de socorro. A garrafa de vinho pela metade. Os passantes olhavam e pensavam: ele está esperando. Estava. A morte ou o telefonema daquela que o fez capaz da maior entrega de todas. WDC

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Fábulas da Reconstrução II

“Repare as estradas de saída, como são belas, eu disse.
Elas também são de entrada, caro amigo, disse-me Custódio.
Respondi-lhe assim: depende de por onde chegas meu rapaz!”

O público da obra – Cantídio

E agora verei o que faço com as paredes que construí ao redor. Já não servem. Talvez jamais tenham servido. Nem proteção nem ornamento. Certamente a poeira da demolição alcançará os vizinhos. Protejam os olhos, farei assim mesmo. Esperava que caíssem e me diziam os céus: não caem. A alvenaria fortíssima que as sustentou por tanto tempo servia de impossível. E era fruto de meu labor solitário. A cada suspiro no mundo, um metro a mais de medo e prisão. De forma que alcancei o máximo de minha esperança ainda pequeno. Achei cinzéis antigos no ático à espera dos veios da pedra; causar-lhes lavra; de feri-las, eu tinha intento. Sangrei as paredes e surgi imundo no seu topo. Horizonte estrelar, me maravilha. Calculei bem a quantidade de entulho. As paredes não resistiram como esperava. Eram feitas de alvenaria insegura. Tal como antes, havia muitos anos, eu me coloquei a construí-las palmo a palmo. J.M.N.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Frágua

Agora eu te encontro frequentemente. Não é mais preciso esperar até o perdão irrecusável de quem ama sozinho a uma miragem. Placenta tão proteica que é esse estado de permanência agora, onde um filho é poema e a prole, dulcíssimos encontros por ai em quando. Agora te vejo completa, mulher possessa, cuja ira arremata o gado de abate, meu pensamento. Cuja túnica não protege sequer o alojamento da aurora – teu colo silvestre. Agora, guardiã das procuras, eu posso parar e te entregar de uma vez o meu beijo. Animado por receber teu convite a ser abocanhado. Sou teu pesto, tua entrada rica em calorias lácteas. Sou aquilo tudo que te escapa e que infesta à fornalha morta da estadia obrigada; os amores que se perdem vigiam-se para não te ter por perto, de tanto que és essa importância íntima que atende a todos os desejos proibidos. Agora eu te enfrento de igual para igual. Tenho condições de vencer esse rodopiar ganancioso que é tua captura, tua caça. Já não sou aquele animal espantado. Aquele falso humilde que baixava a cabeça para venceres plena. Minha mordida te espera em tua próxima vinda. E sei que virás em breve. J.M.N.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Para o Zé

Um presente insuspeito. Meus ouvidos renascem ao ouvir. Foi ao ler isso que decidi não ficar calado. Ela que me aumenta e acalanta. Difícil ficar austero depois de ouvi-la. Adélia Prado merece todo o meu espaço.

Sem abutres ou perdão

Vi Canindé morrendo naquela estrada. De custosa ferida de tiro ele morreu. Era um monstro em vida que desabava tudo ao redor, quando brigava. Um homem sem esmero para consigo e para com os outros homens. Morreu Canindé sem que soubéssemos seu verdadeiro nome. Que bem poderia ser José à semelhança de metade da vila ou Diogo, à unidade do médico que matava os vermes da meninada, antes de sabermos que era impostor. Canindé que tinha nome de cidade era bruto. Homenzinho de pernas curtas e fulminantes para corrida. Braços de tora para as lutas bem de perto e se agarrava, ninguém mais conseguia desfazer o desmaio do agarrado. Aquele homem eu vi morrer. Vi seu negro sangue que é aquele de quando sabemos que a morte cuspiu. Aquele fétido mastigar de destino que sai dos corpos muito usados pela feiura de assassinatos e berros. Canindé esvaiu pela estrada. Sem chuva aquele fim de mundo secou suas tripas em termos de minutos. Eu passava alegre pela pesca do dia, que quando vi aquele diabo formigando a despedida desse mundo me deu algo. Não foi tristeza ou piedade, coisa pior não foi que não senti me comendo a nuca, culpa ou medo de perder a fé. Senti talvez o que sentem todos os homens diante da morte. Um seco longo e pegajoso que faz pensar sobre o que se fez. Canindé me viu inteiro bem perto dele parado. Não pediu desculpas por nada. Falou adeus para alguém olhando meus pés cheios da água do açude. E antes de ir mesmo, perguntou se eu era feliz. Morreu sem ouvir o que eu disse. Morreu como morre todo aquele igual a Canindé, distante da felicidade normal da gente. J.M.N.

Bem acordado

Sinto seus dedos entrelaçados aos meus, sinto. Sinto vontade de continuar assim, ligado a você. Tendo por entre os dedos um pequeníssimo limite que me sustenta. Que prende e ata à anatomia e ao desejo. Sinto o dia pleno enriquecido de raios solares. Mesmo na chuva, sinto o dedo divino quebrando os cristais minúsculos, mil minúsculos fragmentos de luz, sinto. Um acordar completo que nenhum sono silencia. Sinto a constante universal a desenhar outra velocidade em meus passos, sinto. Sinto Babilônia indo às crônicas mais antigas em meus papéis escritas. Trafega-me tanta coisa desperta fazendo vias, vicinais, caminhos. Eu estou acordado, tatuado pelo vencer de passos dados em mim. Sobre meu território é que sinto os passos. Sinto-me vígil, entrementes alado e conquistado não por entes, mas por sorrisos e, por conseguinte, sua boca de milagre próxima. Cujo hálito atraente sinto. É que sinto os seus dedos entre os meus dedos. Nossa teia táctil e profunda, sinto. Bem acordado em leituras e programas televisivos, sinto que posso menos do que um dia quis. Não sou menor, pois ainda caibo entre os seus dedos que me amparam e explicitam. Bem acordado eu me canso naturalmente é como me sinto. Sinto que nesta vigília os sonhos terão nomes cabíveis em papéis, em sinônimos. Poder o seu nome, pode ser o meu. Pode ser o bom dia perpétuo que entre meus dedos ao sentir os seus, presencio. J.M.N.

Para Conhecer: Sophia de Mello Breyner Andresen

A paz sem vencedor e sem vencidos

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

do livro, Dual de 1972

Sophia de Mello Breyner AndresenPortuguesa, nascida no Porto e com um profundo prosicionamento sobre as causas políticas e situação social de seu país. Esta poetisa fantástica, ainda tive oportunidade de conhecer pessoalmente no Palácio de Cristal no Porto, em 2004, quando recitou esta poesia a falar sobre a necessidade de construirmos a paz longe da perspectiva da vitória ou da derrota.

Para Conhecer: Augusto Schimidt

Ouço uma fonte

Ouço uma fonte
É uma fonte noturna
Jorrando.
É uma fonte perdida
No frio.

É uma fonte invisível.
É um soluço incessante,
Molhado, cantando.

É uma voz lívida.
É uma voz caindo
Na noite densa
E áspera.

É uma voz que não chama.
É uma voz nua.
É uma voz fria.
É uma voz sozinha.

É a mesma voz.
É a mesma queixa.
É a mesma angústia,
Sempre inconsolável.

É uma fonte invisível,
Ferindo o silêncio,
Gelada jorrando,
Perdida na noite.
É a vida caindo
No tempo!


do livro, Fonte invisível (1949)

Augusto Frederico SchmidtPoeta da segunda geração modernista, notabilizou-se como um grande patrono de novos poetas, tendo em sua livraria e edutora a Schimidt Livros, um refúgio para novos poetas. Um dos trabalhos mais densos deste poeta paulista é um poema chamado Água Negra, o qual encontramos apenas em uma antologia publicada pela Civilização Brasileira em 1991.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Aonde irei

Irei de volta a Santiago na mesma rota
Circundando o veio entre os reinos, irei
Orar na mesma catedral longeva
Na mesma hora de antes, eu irei certamente

Irei à pluma dos teus cabelos longos
E de dentro da suavidade deles sentirei
O quente do lugar de retorno, o frescor
Com o qual anos antes te iniciei, iniciamos

Irei à partida da história, diário em punho
Perguntar aos primeiros dementes quem sou eu
E quem sou tornará a ter o sentido dantes
Aonde irei, senão à imaculada proposição do ser?

Irei até à sesmaria intacta, à terra neutra
Irei verdejar de esperança sei lá aonde, eu irei
Enluarado no pernoite eterno antes do sono todo
Premente e aceito pelo perdão dos deuses, eu irei

Irei ao sopro da vida una, à colina dos sentidos
Irei ao lugar de pouso do dragão centelha, azul cobalto
Irei flanar em heroicos atos, fazer-me presente
Aonde quer que esperem por mim, pra lá irei

J.M.N.

Toledo, 27 de Outubro de 2005

Ninguém virá nos salvar

A rota está definida, acontece entre meus mapas de agora. Tudo parte dela. Por ela essa viagem aos incansáveis poentes de minha prosa arredia. Esse desespero desmesurado e fulminante que se anreda. Ainda espero que sim. Ter forças para o beijo. As janelas do carro estarão abertas ao vento que sopra. Por muitas vezes estenderei o braço à velocidde da estrada. E brincarei de controlar a vontade do vento com esses poucos músculos que a anatomia me deu e quando cansar, serão os esteios de alma que ganhei dos meus ancestrais, os arrimos para o cansaço, o perdão para o que já fiz e doeu. Óculos escuros não pelo medo do sol, mas para poupar minhas retinas à sua imagem. Ela estará esperando. Ao fim de cem ou mil quilômetros. Estará fazendo qualquer coisa que me surpreenderá. Isso cresce dentro de mim enquanto ponho as malas no bagageiro. Optei por poucas peças de roupa. A liberdade praiana pode acontecer desde o nascer do sol. Não importa sua casa ser pequena, que ela tenha medo de não poder pagar as contas. Estou pronto para chorar junto, para aventurar uns sucrilhos em vez de carne com feijão. Os dias virão sem piedade e a doçura de nossas dúvidas servirá de argumento para jamais deixarmos de andar com as mãos dadas. Ninguém nos salvará dessa escolha. Pretendo pedí-la uma loucura. Mesmo que não ceda serei seu. Irrevogavelmente. Porque eu posso. Porque desejo imensamente. Porque as nuvens e os encantos desse tipo de encontro são ilimitados, especulares talvez. E mesmo sem salva-vidas iremos nadando até o horizonte do mar. Onde repousa o crepúsculo de quem se atreveu a perguntar o mínimo, e jamais desistiu de nadar. J.M.N.

Trilha sonora…

Dove è Chiara #5

Chiara sono andati lontano da me
Já tem tempo de regressar e me redimir
E voltará dentro em breve para minha calma e sorriso
Chiara voltará com mais anos
Com menos certezas
Espero que isso seja pra já
Preciso de sua presença como a de um cálice ao vinho
precisa do vidro, da fundura, da borda para o gole
Chiara voltará com mais perguntas
E eu a ouvirei com a esperança de que algumas destas
Sejam iguais às perguntas que me calam agora
Chiara sarà risolvere il mio dubbio sulla nostalgia

J.M.N.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O amor começa

“My Soul. I summon to the winding ancient stair;
Set all your mind upon the steep ascent,
Upon the broken, crumbling battlement,
Upon the breathless starlit air,”

William Butler Yeats – A dialogue of Self and Soul (1918)

O amor começa assim, de repente, na porta de um amigo, com um abraço evocativo do desamparo que já não sustenta o personagem principal; começa numa brasa envolvente que se aproxima de um susto e esgarça a imatura presença da espera por dias melhores, quando melhor mesmo é saber que o amor vem; e vem a despeito de toda contrariedade, vigília; vem apelidado de interesse, com uma formalidade de colegas a vigiar prosódias quando além de um bom dia, acontece a saudade. O amor começa nesse convite silencioso em se fazer compreender as filigranas de nossa falta mais secreta; quando mesmo dentro de um bocejo, corremos a certificar entendimento completo pela fala do outro; começa alimentado por quase nada e um suco de cor improvável; o cheiro desabonador de memórias tristes afeta a gente quando o amor está prestes a surgir com seu perfume próprio de embotar doloridos, chorume pelas coisas enterradas no quintal; vasto e apelativo como um avião escrevendo frases no céu azul de um domingo, a cidade toda sabendo que você está entregue, perdido. O amor começa do viço de uma planta que jamais tinha nascido entre as tuas plantas do jardim; um dia o olho vai certo no amarelo único das pétalas; sol vegetal decorando o vermelho em redor; não tem nada que se sinta mais só na pele e o frio que acontece nas manhãs de outono se supera com a leve lembrança daquele ser em que assentados estão os estados clínicos do novo vício pela presença nos mesmos caminhos; através do tempo qualquer em um dia apinhado de problemas, a imagem vem com a convicção de que terá um porta-retratos lustroso no fundo da pensa da gente; e acontecem sorrisos e inexplicavelmente ficamos afáveis, nenhum calor incomoda. O amor começa pela ferocidade com a qual declaramos extintos os outros todos amores de antes, aqueles que estavam vindo, aqueles que sequer passaram do portão da frente; não há ódios inexplicáveis porque a única desgraça é não ter notícias de quem será o portador desta cédula de valor incalculável que é o amor que começou. O amor começa quando outro amor acaba não para competir e se dizer mais possível do que aquele morto ou fugido; começa de onde se rompeu a linha de energia; de onde a luz não vem mais o amor começa e cheira como um continente inteiro de jasmins-da-noite e suzanas-dos-olhos-pretos; começa, por sorte, humilde, pedindo apenas o que temos a mão e se nada temos, começa nele mesmo; assim mesmo sem nada termos, o amor começa. J.M.N.

Depois de viver um século

Não, ela não tem dezessete anos. Tampouco eu a flor daquela idade tenho. Temos na fronte marcas do que fomos e insistimos ainda ser, apesar de tudo. Apesar do que todos dizem que não devemos. E dizem que é sem finalidade ser demais num campo pleno de nadas e antiguidade muito pobre de sentimentos. Apenas a delinquência que surge é sinal de que têm vida aqueles que lá existem. Ainda temos o diamante fino das palavras a embalar finais, para auferi-los da estatística dura que é viver em liberdade. Temos a voz de quem veio antes a preparar caminhos. Não esquecemos quem nos precedeu na tristeza e na alegria, não deixamos de oferecer aos idos o que só podemos viver a partir deles. Não trabalhamos a conquista, mas ela veio. Não formulamos defesas ou as desancamos, mas elas se comprimem a cada hora depois daquele abraço inesperado e intenso. Poetar calado eu aprendi sozinho. Que quando caía uma nova palavra em meus braços, deitava nela a imensidão do que eu sentia e ainda nem tinha anos para sentir – como quando descobri ‘saudade’ e nela deitei minha santíssima falta de um amor que viria. E passei saudade esses anos todos. Menos naqueles momentos em que antes de trocar beijos ou cartas ou anos a dois, tinha aquela presença maciça de algo que ainda viria. Como agora. J.M.N.

Trilha sonora…

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Recíproca

Ontem tive um daqueles sonhos do Chico. Medonho, que faz a gente acordar como quisesse sufocar. Agitado, tufado de pretensões e achaques. Um furor que parece não acabar jamais e quando menos esperamos já nos invadiu o dia e parece que nem saímos da imensidão de seus cenários e mimeses etéreas. Um sonho que todos os meninos esperam ter um dia e que poucos homens feitos suportam viver, aceitar de frente o fato de que, no fim, sonho ou não, algo mudou bem dentro da estrutura da gente. Uma surpresa acontecida quando menos se espera e a vazão de vontade que advém desses sonhos, do tipo único e avassalador, tem quilate de joia rara, compraria um continente inteiro de tão valiosa e potente. Não houve guerra, extermínio. Neste sonho eu não estava afogando em águas turvas e sem ninguém por perto. Dentro daquelas miragens colossais a que tive acesso, sobre as quais minhas palavras faltam ao dizer preciso – entre o encanto e o pavor de não ter meios de segui-las e descobrir se era apenas um engano da privação titânica, ou simplesmente um fato a me esperar por inteiro, humilde e servil diante da imensidão do que existe realmente no destino dos olhos. Não sonhei com crateras, vulcões. Multidões me perseguindo. Por Deus, eu sonhei com uma mulher e no meu sonho ela me queria tanto quanto eu a ela. J.M.N.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Prosa serena

Um avião decola entre meus vasos sanguíneos. Um frêmito de reorganizar a estrutura dos ossos e da carne. Olhos, pele, batimentos e gritos arribados. Provavelmente estarei descendo em algum lugar desabitado. Utilizado apenas pelo verde e nada mais. Minha identidade é a flora que permanece em pé, a despeito de meus passos, a despeito das cruzadas e de seus combatentes. Sou tudo isso que se repara no vento quando na canoa as ondas quebram que nem as pedras do pior caminho. Um barulho que só a poucos é dado. A vida indo. A seguir suspeitas e vontades que nem mesmo a razão ou a coragem tem maneira de vencer. Meu remar é inconstante, porém menos alquebrada é minha sede por estas praias a que chegarei daqui a uns quilômetros. Destinos finais para alguns. Cais e despedida para outros. Sou um desses, cujo canto imita o berro perdido de um boi no abate. Comerão sua carne. Entretanto sua liberdade já chora sua ida bem no fundo do macio do vento. J.M.N.

Sobre vícios, folhas de acetato e algumas dúvidas

Tornar-se líquido, bebível. Transformar-se em substância a sorver. Básica, ácida, colorida naturalmente ou com pigmentos inventados. Ir para dentro de alguém. Habitá-lo, fazer parte dos sistemas, passageiro das sinapses, aludir necessidades de corpo inteiro, causar a pressa absurda pelo alívio. Ser mais íntimo que qualquer sentido permite ser. E repetir-se. No mesmo e arrebatador querer do dia anterior.

Permitir as verdades de alguém traduzidas em nós. Sobre nossas próprias verdades. Ser de nada, ao menos uma vez. Nossa pele transparente ao quesito alheio. Os riscos porosos de agarrar e nunca apagar traçando rios, ilhas, palavras soltas e espirais. Nosso deserto elástico a receber definitivos arabescos, retrações, filigranas bem resumidas e tão delicadas que o breve passear de dedos suscita a vida, o despertar de todos os anos de adormecimento compartido ou solitário.

Quem pede por isso? Quem se atreve? Quem deixaria a vergonha seguir seu rumo e pintar a si como a todos os outros intrusos da felicidade? Qualquer coisa precisa ser dita. É necessário o caminho seguir. É desgraçada essa impetuosidade por manter-se, não mudar. J.M.N.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Sexteto de inverdades

Sou como a verdade a buscar pretensamente ser tudo. De erguer-se absoluta por sobre as cabeças pensantes do vale.

Sou com a corsa desgovernada, cuja velocidade da fuga não impede de ter-se feita a surpresa do impacto.

Sou como a rosa murada. Que suas defesas não usa e já não chama ninguém sua beleza perigosa, de tão domesticada.

Sou como o outro eu mesmo. A rosnar palavras de espelho, a esperar o retorno das vozes. Com medo de saber quem eu sou.

Sou de tantas mãos como o tato. Um sentimento em si. Seja textura, maciez ou desventura.

Sou a palma da mão de um homem, sobre a última nota no balcão. J.M.N.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Palavras de Ontem Indica

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Se eu fosse pedra gostaria, certamente, que Eduardo Galeano contasse minha história. Ninguém o faria melhor. Pouquíssimos conseguiriam em historietas de breves linhas, dar sentido para existência de um mineral e tecer sobre sua roupa desprovida de encanto, a palavra viva que ecoa sabedorias ancestrais.

Seu livro “Bocas do Tempo” serve para amolecer pedras, para tergiversar a rudez com que o tempo nos imprime marcas, rugas, palavras anoitecidas. Aquelas linhas de suas historietas costurando imensidões da história dos homens às mais circunstanciais vivências dos personagens, fazem o livro ter essa amplidão que apenas o tempo transcorrido ou inventado pode nos dar.

É possível a Galeano, falar de Copérnico, de sua tia, de Caetano Veloso, de uma pessoa que acha um osso enterrado e, ao mesmo tempo estar a falar sobre amor, sobre a infância, sobre a água e sua indispensável existência. Mas não só: a terra-mãe, as Américas dos três descobridores, a palavra, imagens, música, política, diferenças raciais são material para o belo, para o sem fronteiras.

Envolto na mítica transcendência dos personagens, muitas vezes encontrados nas argilas das memórias que insistem em fazer-nos escorregar de volta ao começo de nossos pensamentos, Bocas do Tempo é, sem dúvidas, um livro leve, feito para ler comendo pão e café-com-leite pelos fins de tarde. Feito para ser citado em reuniões com amigos, mas não os literatos ou intelectuais, porém aqueles que sabem o gosto da palavra pedra, da palavra tempo.

Não deixo recomendações, não faço votos de que este seja um livro de cabeceira para quem quer que seja, entretanto, faço questão de dizer que em suas páginas é possível saber-se pedra e água, saber-se passado e futuro, saber-se, mais que tudo, integrante das incríveis armadilhas e portais que o tempo nos abre quer seja de maneira involuntária, quer seja num livro com seu nome no título.

J.M.N.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Todo dia a insônia me convence que o céu faz tudo ficar infinito*

A todos aqueles que fazem
de suas noites e dias
um único infinito de estados e soluções.

Um dia a gente nasce e chora e parece que o mundo todo cabe em nossos pulmões, sem fronteiras, sem restrições ao ar de fora – escuro de pó e pressa. Ao sentir o primeiro tato completo, que é feito da forma e da fundura, da cor e da textura, temperatura e utilidade, sobe como um suor de trabalho extenuante que é a flor do descobrimento nos arrancando do que antes era apenas repetição das inflexões do outro. Ganha-se razões.

Um dia a gente abre a janela e aquelas tranças tão longas como as cordas do varal laçam a gente. E fica-se desatinado e preso à tortura de quem passe para resgatar o prêmio de dias antes – nosso peito, nossas primeiras insônias, as crônicas escritas em primeira pessoa. Finalmente acontece o cúmulo de sairmos de dentro e passarmos ao outro. Uma oferta irrestrita, de aceite incerto. Ganhamos as possibilidades, escolher é o próximo trabalho.

Um dia a gente não acorda mais. Por que não dorme mais. Por razões e possibilidades que não nos pertencem mais. Que saem de nós aos outros, aceite independente. O suor lavando o rosto de um cansaço espúrio. No tato um odor de tragédia que não se repassa a ninguém, que além do sentir, os pulmões expelem como a um tudo que não se suporta mais. Haverá quem diga chiste, uma tristeza permanente e sem dignidade.

Um dia o sol é o mesmo do dia anterior e o tempo passa definitivamente ao relógio. Nossos descobrimentos deitados nos ponteiros. Uma confusão desatinada entre o que somos, o que fomos, o que temos... O ser reclama um espaço, mas tudo faz parte do mesmo e infinito tempo de antes de estarmos aqui. E desta vez, não há ninguém para fazer força e nos tirar de dentro desse escuro qualquer. J.M.N.

 

*Título dado pelo Angelo Cavalcante, mesmo sem um pedido meu.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Coisas que dançam entre a luz e lugar nenhum

Ao dormir esta noite que vem pedirei exagerados sonhos aos sóis de um planeta qualquer. Cosmologia principiante para esquecer que não estarás aqui. Tudo calmo e triste e azul boreal na cama da gente. Não era pra ser. Já entendi. Mas ainda assim é difícil saber do entredentes maldoso dos outros. Falando de tuas viagens, contando as certezas de tua felicidade atual. Te colocando de volta em mim como um negativo de foto. Um vitral errado.

Antes de chegar para o descanso, esse caminho todo que ainda tenho de fazer. Olhar aos marcos de quando sabíamos os dois que estávamos próximos de casa. A velha casa dormente com fantasmas a janela, a estatueta esquecida no cume de uma padaria que nem era tão boa assim. Sei lá, esses estrepes afiados que encontram os nervos mais sensíveis de quando andamos sós. Dói o caminho. Dói a moça a esperar seu par. Dói o centro do que eu nem tenho ainda.

Apenas isso que tenho dito. Um soldado esquecido. Desertor, quem sabe? Não há verdades que pronunciar, porque os dias se cumpriram sobre o medo de encontra-las. Deu musgo onde se esperava uma mentira. São lugares ermos como esses aqui dentro que eu possuo. Uma lágrima que nada faz senão danificar a minha visão noturna. Fazenda de nada. Bosque onde o cascalho e o húmus de tantas árvores não sentem mais o afundar dos passos de ninguém.

Quando eu chegar para derrotar o corpo e esperar as mariposas de agosto, estarei como tal te encontrei, mil anos atrás. Dobrado em mim. Esfarelado nestas falanges de letras que me escapam constantemente. O olho na janela que não se descuida jamais do dever de apresentar paisagens. Essa noite, mais um pouco, o brilho incrível dos teus olhos virá se esticando, como as luzes da rua inteira a entrar no breu da noite, meu olho some, sou tua luz. Me despeço de ti, porém retorno.

Mais uma vez terei esperanças de que o sono e suas vantagens trepane meus ossos até o esquecimento da terra me apanhar. Mais uma vez te pedirei para segurar minha mão enquanto eu rezo para esquecer de ti. J.M.N.

Para ler escutando…

Arrimo

Agora as coisas pendem desse teu gesto. Que não foi uma mera mensagem de intensidade tão sentida em mínima linha de palavras. Foi toda feita do imenso que te afortuna que impera nesses nossos dias de agora. Nossa era fabricada num beijo, aquele beijo de teor tão suicida que se nos chegou em hora tensa, desarrimada. Sou eu mesmo esse pedaço a que reclamas atenção. Esse posto dormente em teu continente sempre cheiro de vultos e acordeões. Canções para quem? E chega a hora, o justo momento de, em mim, nascer o mesmo. Desfio o novelo. Do começo ao fim esse medo de não dar conta. E vai chegando o meio do caminho, a linha diminui de volume, mas o rumo está ali. Permanece. Sou dessa forma tão concisa que me arrumaste. Não saio dos trilhos. Dou pequenos vexames por estar enamorado, arredio aos outros, dentro de teus abraços. Essa pequeníssima frase que me tornou profundo, eu mesmo oceânico como jamais me houvera – te agradeço. Mas só ao ponto de me tornar tua imensidade. Não mais distante que essa tua boca de resolver meus pecados todos. J.M.N.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Quietude

 

Dá gosto te sentir assim, apaziguada; como quem dormita no regaço de lembranças boas. Hei de te lembrar que essa paz foi invenção, e não dádiva. Coisa de embrulhar que fostes cerzindo com as linhas invisíveis dos meus silêncios. Na hora que não cheguei, primeiro veio a ira e depois, preguiçoso, o sentido. Agora tens uma riqueza contigo: uma narrativa para a tua dor. Agora sabes que viver só é possível assim, repartida.

Te olho como que refrescada pelo bocejo da noite, e às vezes penso que esse sossego mau assentado vai logo passar, pois assim é o seu proceder. Logo vem a lembrança desse domingo magro de entregas. Logo essa mansidão vira apenas mais um gesto do teu pensamento quando afrouxa. Mas sei que agora vais à cata daquela minha palavra afortunada que te fez a mais abrigada das mulheres. Lá, como quem chegou em olho d’água, encontrarás sobra de forças pra recomeçar o que te exauriu e preencheu. WDC

sábado, 22 de outubro de 2011

Memórias da chuva

 

Chuva é de ficar.

Suspender-se de obrigações,

De comprar o pão, a quarta de café.

Chuva de mãe chamar pra despiolhar o cabelão.

Passar o pente e contar histórias,

Tirar os bichinhos da cabeça e

Enche-la de desatinos -

O poeta e seus começos.

Chuva de sentir aquela tristeza delgada,

O olhar comprido

Pros irmãos breados de distâncias,

Pro pai vestindo seu silêncio mais verde.

Chuva que embarca uma moleza no coração da tarde.

A coragem única vem dos cupins que criaram asas,

Dos amigos em poças surgidos.

Chuva de doer macio,

Que até as horas se ajeitam no calorzinho do ponteiro,

Que até o coração se agasalha na saudade. WDC

terça-feira, 18 de outubro de 2011

20.000 Acessos no Palavras de Ontem

Caros Leitores,

Acabamos de atingir a marca de 20.000 acessos. Talvez, perto de outros blogs, este não seja um número tão expressivo, especialmente porque já estamos no ar a quase 4 anos.

Contudo, para a proposta do Palavras, temos certeza que é uma marca excelente, especialmente porque atraí pessoas como você que comentam, mandam e-mails e interagem de maneira especial com o espaço.

Queremos, pois, agradecer sua presença e reforçar o convite de vir mais vezes e divulgar o Palavras, esperando que, através da rede, a literatura e a cultura em geral, sejam cada vez mais acessíveis.

Sinceramente,

Palavras de Ontem

Ter e ser todas as coisas (ou “É apenas vida”)

Às vezes dá uma vontade de saltar do trem, correr contra a via estreita e reta que conduz a vida rumo ao fim. Negar que acabaremos um dia. Toda força do corpo empenhada numa corrida arriscada em razão de coisas que a própria razão desencoraja. As redondezas que sequer os breves lampejos de bom senso frequentam. Um agir apetecido e quente que ultrapassa as possibilidades de compreender, atinar, ouvir. Entrementes, os sentidos, de poros amplos, sugam para dentro da gente o mínimo neurotransmissor que venha de nosso objeto. Uma mulher, seu cheiro, seu centro, sua carne rubra a esperar sete dias por nossa volta. Um trabalho, a inveja de si mesmo, aspirações pela eternidade do que se fez e ficará mesmo depois da morte. Um livro, o derrame de lágrimas a cada palavra sentida e vencedora da esgrima com tantas outras, saberes vastos, intuição fremente. Um amor... Isso tudo de antes, comprimido como o núcleo fissurado de um átomo, cuja explosão elimina todas as coisas ao redor, não deixando rastro de si nem de outra coisa qualquer e ainda sim, um espetáculo de brilho, cor e depois silêncio total. J.M.N.

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segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Depois do fim das certezas

Por causa de Ilya Prigogini que me incomodou bastante

Se tens certezas me mate. Se as pode pegar com as mãos como faziam nossos avós, então aceito abaixar à cabeça. Não pretendo discutir as leis do universo, tomar-te por louca, pequena, sem noção do que é o amor e as coisas abruptas que ele nos causa. Peço-te apenas para me dares certezas. Quaisquer que sejam. Estruturas eternas, as últimas partículas ínfimas, um lençol que nos proteja integralmente daquele frio insidioso dos invernos da alma. Se tens isso em teus papéis, em tuas gavetas secretas, nos tomos das obras antigas que ainda consultas como as únicas verdades terrenas. Se não tiveres e contornares esse teu ímpeto por não admitir teu caos, vira a esquina, segue em frente, passa pela torre onde ocorreu o primeiro beijo, depois compre amêndoas no mercado central, daquelas que cheiram tanto que as usamos para perfumar as roupas durante o mofado outono daqui. Não precisa bater à porta. O jantar será servido assim que chegues e a sobremesa, assim que espalharmos as amêndoas sobre a torta. J.M.N.

Desmemoria III

Mostrou-me as armas. Estava pronto para matar. Apontou-lhe o rifle bem no meio dos olhos. A primeira vez apenas para testar. O homem com a cabeça quedada ao lado direito, estava preso ali havia dois dias, para não gastar alimento, dizia o sargento. Assim chegou o dia. Todos alinhados. Ele era o mais efusivo dos soldados do pelotão de tiro da 3ª brigada de infantaria. Passou bem próximo ao condenado e sussurrou-lhe algo no ouvido. O pânico tomara conta do sujeito. Prontos em linha ouviram a ordem. O major chefe do pelotão comandava o ato. Quando haviam preparado a mira, o soldado dez apontou o rifle em direção ao Major e atirou duas vezes. O pelotão não sabia o que fazer. Ninguém atirou no soldado dez e ele calmamente se dirigiu ao condenado, desamarrou-lhe as mãos e os pés e disse ao pelotão: nenhum homem merece isso, somos melhores do que esse major de merda. Ninguém jamais escreveu sobre o que ele fez numa clareira erma do interior do país em junho ou julho de 1973. J.M.N.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A história mais triste jamais contada

Esqueça os romances de época, a trilogia tebana ou os sonetos de Neruda em cujas linhas suspeitamos letra a letra não sabermos nada sobre o amor. Esqueça os personagens históricos em cujas vidas baseiam-se as parábolas sobre a ordem do amor e da expressão vocativa e potente sobre sentimentos nobres a uma outra pessoa. Esqueça o que aprendeu em análises pessoais, dentro ou fora do consultório, em casas suspeitas, em peitos ou braços de aluguel. Diga adeus aos rabiscos, aos cadernos da infância, às primeiras cartas de amor, escritas em papel escolhido e com um perfume que o tempo levou, mas que a memória ativa independente de estar lá. Risque dos mapas as rotas de fuga, as casas em que planejou morar junto com alguém. Passe a flertar com a transigente presença das pessoas modernas, ávidas por novidades diárias. Veja os tornozelos e pernas expostos, sucumbindo ao variado desejo de rua, de quem não poderia desejar liberto. Pense naquele verão em que tinha tudo nas mãos, mas os dias acabaram e a presença daquele ser amado à décima potência no mais curto segundo da vida. Esse é o ponto. Esse é o beco dentro do qual se revelam átomos a mais para nossa energia de ser. Um escaninho esquecido que de repente vem à lembrança trazendo à borla os melhores momentos de nossa alma. Quando comecei esquecer essas riquezas todas de além da realidade, do continente oculto do meu peito ardente, vi que tinha nas mãos a história mais triste jamais escrita. E ela era a minha. Por salvação, guardei escondidos, todos os papéis sobre o que vivi e todos os planos sobre o que viria a viver. Acho que preciso de um novo começo. J.M.N.

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Diário das Presenças I

Nome não se dá a esse tipo de pessoa. Quente, mesmo que longe; gigante, mesmo que dentro de um ícone digital. A essa pessoas que nos chamam, agradece-se. Para elas bytes de sonhos e a árdua tarefa de criar uma realidade para o corpo com que já sonhamos, antes mesmo de ouvir os dígitos erigindo seu nome em nossa tela. Estranha aventura essa de seguir caminhos virtuais. Em cuja paisagem não sabemos o que se ergue, em cujo tempo não sabemos se pensamos ou desistimos. Essa pessoa que me apareceu hoje, às 11:45 da manhã, enquanto meu ofício forçava esperas e relances com que estava ao redor, sumiu no mesmo pixel em que apareceu. Tenho seu nome, sua profissão, seu estado natal e mesmo assim, por meio dessa memória minha que se atrela a tudo, ela deve ter bem mais coisas minhas, as quais eu não sei e nem pretendo perguntar se são válidas. J.M.N.