segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Tesauro da meia vida

em minha própria memória

Eu te saúdo homem. Como menos se espera saudar a um inimigo. Saúdo a tua tenacidade, tuas advertências, teus desvios de caráter. Não te contesto meu caro. Não me admiro que tenhas tamanha ingerência sobre minha vida e que de tantas pessoas gastas, sejas meu mais fiel inimigo. Te apoio, entretanto. Com a mesma disciplina de amarrar cadarços, de escovar os dentes antes de dormir. A elegia parental do bom cuidado, do autocuidado, da higiene. Limpa-se o rosto, a pele, a língua, as escaras ficam. Te encontrarei num instante, seu demente. Pagarei a fiança, levarei tua roupa engomada na segunda e critérios para gastares tuas economias. Levarei o silêncio da casa. Os retratos vencidos. Os fantasmas cansados que não assuntam, entrementes, suplicam arrego, mansidão de reza e uma ou outra vela pela ex-vida. Te ouço cantar meus roques e tangos, e te vejo escrever os poemas antes de mim. Como se tua mão fosse minha e como se a minha fosse de outro. Te vejo exultar pragas e ruindades, macular a imagem de pessoas que eu amo. Essas tuas telas medonhas que me falam socorro, que quase explicam tua besta crescente. Fecho a janela de agora e não somes. Fujo pelo mar para a jangada de pedra e me segues. Sei que não partirás e que não terás diminuída tua forma de se apegar. Quero que saibas: ajoelho e lavo teus pés e às tuas feridas dou sulfa e carinhos. Não por piedade ou crença, idolatria ou vício. Mas pela certeza de que ao te ver tão deslocado, tão morto em vida, não me és e eu, decerto, não te serei nunca mais. J.M.N.

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