A porta abre e ela se apresenta. Sua presença é logo motivo
de euforia. Corpos se debatem. Tem umas proporções destacas passos resolvidos e
boca de carne farta. Manda um bom dia demasiado feminino para o conjunto. Todos
a escutam atentamente. Mas há dessincronia entre intenção e gestos. Parece
querer muito mais do que ser capaz de realizar. O plano exposto é seguido por uma
risada geral e abafada. Ela se invoca. E saca suas armas. Todos armados e
apontando canos nervosos uns para os outros. A situação fica muito tensa.
Alguém vem por trás dela e dá-lhe um beijo. Ela sucumbe. Fazia tempo não era
beijada daquele jeito. Depois da cena, todos quietos se reúnem novamente e ela
volta a dizer que é plano de uma morte só. Os detalhes ficam bem mais claros. Profits e outros dividendos chegam
atrativos. Os homens e outras mulheres já incluídas na turma aceitam de maneira
diferente sua proposta. Então haverá apenas uma morte. E ela dará o tiro fatal.
Sua especialidade de anos e anos. Apontar, controlar a respiração e disparar –
o estampido, o milésimo de segundo antes do fim. Ela conseguia se lembrar da
última morte com certa alegria. Naquela oportunidade, havia apenas dado a ordem
e as coordenadas para o tiro. Seguiu falando. Tudo acertado, dia e hora
marcados nos relógios. Todos esperam. Depois da morte daquele idiota, fortuna e
fama os aguardavam. Mas tudo continua silencioso e calmo e, em cima da hora,
nada explode, ninguém houve o tiro-aviso ser disparado. Os olhos dela cheios de
lágrimas escorrem. Arma na mão, ela se deixa levar pela lembrança. Pensa no
beijo. Quase o revive. E então, solta pelo rádio: Abortar! Abortar! Já era tarde demais. Alguém morreria naquele dia.
Cada um seguiu sua rota de fuga. Dias depois se reencontraram para acertar as
contas. Afinal, houve investimentos e o breve posicionamento de intenções, às
vezes é suficiente para gerar dívidas de vida inteira. Ou simplesmente dívidas
de vida. Mais tarde, em terreno ermo, quando olhava diretamente o breu dos
canos de seus assassinos, lembrava-se com mais vivacidade do beijo. Quase se
urina. O beijo que há muito ela esperava. Depois o negro. Aquele era serviço
para quem não pensava demais, concluiu. Morreu em nome do que vivera uma única
vez, depois de tanto tempo. J.M.N.
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014
domingo, 23 de fevereiro de 2014
Dez Encontros (IV)
Um tranco tão conhecido aquele da cabeceira da ponte entre o
continente e a ilha onde nasceu. Retornava no seu carro que tem um banco macio,
mas não tão acolhedor quanto o colo do seu pai no dia em que deixou a ilha com
2 anos de idade.
Antes de sair da ponte já sentia os anos se desmultiplicando
dentro si. Ali naquele lugar havia quintais onde cresciam os camapus – quem realmente
se importava se os camapus ainda cresciam nos quintais se não ele? esse homem
que rebentava menino diante daquela esfera verde e sensual que se oferecia no
meio do matagal como uma pérola da infância.
As ruas vazias, nelas se esbarravam apenas as memórias. As
calçadas altas que foram seus segundos interditos. Não queria ter saído tão
pequeno. Queria ter sido mais filho daquela terra apadrinhada de Nossa Senhora
grávida de Jesus. Queria ter aprendido a beijar com os lábios untados de abiu
roubado. Seus amores, abençoados pela seiva dulcíssima, seriam todos candidatos
à eternidade.
Viu as ruínas da mercearia do tio onde um baleiro giratório
seduzia a si e aos irmãos. Sentiu no braço o aperto da mão pintada do avô a
segurá-lo num tempo onde mulheres se transmutavam em porcos e seres míticos
reivindicavam tabaco com assombrosos assobios. Aquela permanência forçada num
mundo de visagens e deuses desejantes, agora sabia, tinha sido decisiva pra
escolha do seu ofício. Ao lado, por uma janela matinal viu um gesto repetido a
séculos. Era a velha feitiçaria das mães que modulam a temperatura do café do
filho usando duas xícaras.
Eram encontros com sabores e cheiros tão íntimos, mas tão
íntimos que chegava a ser estranho. Era sua razão que se arredava. Eram as
palavras enrodilhando algo indizível. Eram retornos pra lugares de onde nunca
saiu. Era ele, tão inegociavelmente semelhante a si mesmo. wdc
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014
Reflexão
Retorno do exílio. Menos anjo ou bandido. Menos certo sobre
ter e querer. O ser é quem propõe se reconciliar. Atenderei ao pedido. Antes,
porém, uma última joça, um derradeiro assassínio. Na ponta da faca extermino a
rudeza, a impropriedade de chamar ao outro, canalha. Dirijam a mim as palavras
malditas, as vespas da morte. E, sobrando coragem, atirem a bosta dos estábulos
em meu rosto claro, dado sem pudor ao que corre nestes dias. A vida não deve
ser entre cortinas. Digam, mas digam rosnando. Furiosos de estar em presença de
quem apenas escolheu receber-lhes. Quero ser concebido sem pecado e para isso, o
auto-perdão, uns petardos e a revolução radical do amor ululante, do abraço ao
demente, reconhecendo-lhe a igualdade afirmando em contrato que mesmo se
decidirem abrandar seus nomes, não se rasgará a liberdade que apenas este – o louco,
o outro, o lobo em todos nós – olhando nos olhos do mundo, demonstra razão e
músculo para duvidar de mim, de ti e de toda e qualquer imagem. Volto não do
deserto ou do silêncio. Volto de onde me disseram que eu era igual – um estúpido
pedaço de carne e tempo que ainda teima acreditar em si mesmo. J.M.N.
Três excertos
Da linha sobre a água – Tenso, o líquido me suporta, qual o
peso de imodestos arranha-céus. Sob as vigas o infinito transparente da
mistura. E a textura dos meus sonhos, espessa, embora fluída, temperatura
neutra que me aconchega. E dentro disso imagino poder demais e sobre tudo.
Estreio a bondade do abrigo e dou de beber a quem sentar comigo. Sobre essa
película que me dá estrado e consome, dizer amor é mais que um perigo. É optar
em viver entre afundar e renascer.
Do sorriso do menino – Seu canto de boca tão denso, esconde a
minha verdade. Te sou. Me és. Sei lá. Não pretendo acertar. Não pretendo morrer
sem dizer que errei. Mas o fiz, sinceramente, esperando acertar. Quando te
trouxeram da sala, prestes a ser quem mais me tem, eu senti como fosse de lava
e pressão e a Terra toda pudesse perecer diante de um único grito meu. Assim
que sorriste, uma calma. Uma pegada sozinha no centro do meu ser. Que ainda
está. O gosto intenso da completude imediata que só reaparece, trazendo alento,
quando dizes estar sentindo a minha falta.
Das mãos de maciez incrível – É despertar milímetro a
milímetro. Sob umas tais estrelas que vêm e tocam epiderme. E assustam de tanto
brilho e calor. Nos põem divididos, a serviço da loucura. Procurando a metade
que anda mesmo ao lado. São as mãos de um monstro há muito derrotado, ou
miríades intrusas apelando sentidos a todos os meus neurônios. Não sei se
acordo, se imploro, se me dedico. Não há razão que me explique este nascimento
dentro de mim mesmo e posso apenas pedir, ou rezar, para que me firas logo,
para que saias de mim ou para que mergulhe definitivamente naquilo que chamo de
dentro, pois assim talvez entenda e absorva esse toque como o despertar
instantâneo de toda a minha esperança.
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014
Cartas a ninguém (19.02.2014 – 03:34 a.am.)
Voltei Amor,
Depois de quanto tempo não contei. Mas estou aqui. Enfadado e
furioso pelas tantas coisas que me dizem a teu respeito. Invasivos, desordeiros,
inimigos tão próximos. Atingem teu nome, arranham a pintura da tua casa,
estilhaçam as vidraças. Mas, para mim, serás sempre a mesma e tua casa, a
moldura de quando eu era mais completo. Serás sempre a dona dos mesmos cabelos
macios e de todas as cicatrizes da perfeição sobre as quais meus olhos
desenharam um destino quase.
Voltei, pois preciso te perdoar por ter deixado os mapas à
mão. Perdoar por teres riscado os caminhos para que eu me perdesse e pudesses
ser minha heroína ao resgatar minhas sobras no fim da aventura. Perdoar,
simplesmente, por já ter me perdoado de dentro pra fora, em todos os contornos
da minha tristeza continental. Perdoei-me sem martírio ou silícios. E procuro
calar teus inimigos gritando-lhes sobre as vozes deletérias que suportaste o
que mais ninguém suportou.
Quero contar-lhes as verdades sobre tua cadeia, teus pés
cimentados à beira do rio. Mostrar-lhes que a espera foi teu castigo e o quanto
isso fendeu tua ideia de horizonte. Voltei para, de certa forma, cumprir a
promessa de mostrar quem sou e dividir com a posteridade que aguarda a
explicação de que sim, fui ao mesmo tempo vilão e benfeitor. Assecla da permanecia
e principal conspirador da fuga. Não contribui em nada para o senso de
pertença.
Então, Amor, por mais que seja ódio o que te impede de me
dirigir palavra. Por mesmo que seja o desejo de morte e de um olá. Defenderei
aguerrido teu direito de imobilidade, de seguir todas as regras e de impedir o
sol de atravessar tua gelosia. Mas nunca, Amor, de nenhuma forma, aceitarei que
desistas de tentar, que te impeças de olhar o mundo com menos chumbo ou
desespero sobre as pálpebras.
E por toda a imensidão de pedidos de socorro que cabem no teu
silêncio espartano, Amor, atreverei cruzar mais uma vez a rua por onde passas e
te oferecer meu casaco para evitares uma poça de lama e segurar tua mão quando
o salto alto quebrar. Sem pedir nada em troca, senão para que te perdoes
também, pois já vai longe o tempo em que o peso de duas vidas te exigia um
esforço sobre-humano ao caminhar.
Sinceramente,
J.Mattos
Assinar:
Postagens (Atom)