sábado, 30 de janeiro de 2010

Só quando a gente se separa é que a gente se aproxima

Um dia em que chorar fez parecer mais leve o viver.

O que eu queria de quem eu amo era tão impróprio que ficou naquela esquina, quando eu contei uma verdade que nem eu mesmo estava pronto para ver novamente. O que eu amo de quem eu quero é ainda mais solicito e indulgente que as frases que ele disse sem adjacências, sem saber que meu dentro explodia na falta das coisas mesmas que ele aventava. E eu apenas corri para meu nome, para mais uma vez confirmar quem eu sou, antes que as lembranças devorem tudo quanto sobrou dos meus risos no dia de hoje. Apenas hoje e talvez ainda não definitivamente, percebi que as tais perguntas dela eram um pedido desesperado de respostas que não me cabiam. Como tampouco me cabia admirar minha fortaleza diante da queda dela. Somos tão próximos e vencíveis que lembrar disso agora, exatamente quando ele enumera os motivos mais felizes que me fazem, a mim mesmo, expandir e querer igual. Me fez querer cruzar sua porta e apenas dizer-lhe que eu estava enganado. Que, tanto quanto ela, qualquer bala ou poema pode ferir minha fina membrana, pode extinguir a razão de meus olhos sem, contudo, interromper o que continua a crescer, mesmo quando à estrada, andamos em direções opostas sentindo a mesma brisa quente do verão que nunca foi nosso. J.M.N

Belém, 30 de janeiro de 2010 – 20:36
(ao lado do meu irmão mais próximo)

Perguntas de Ontem VI

Andei até a outra esquina. Garanti que o sol escaldante das tardes daqui ficasse entre minha imagem e a vontade dos outros saberem o que eu fazia. Ninguém me via. Coloquei a mão no bolso aflito. Aquela agonia que sempre se instalava nas tardes em que nos entregávamos às fomes insaciáveis me veio de repente e acobertou toda a medicação distribuída por meus tendões e diafragma. Senti minha respiração abreviada e mais uma vez pensei que não suportaria deixar de ouvir tua voz por mais uns minutos. Liguei! Fora da área de cobertura. Subitamente tudo ficou desarrumado. Tudo, simplesmente, deixou de ter sentido. J.M.N

Pergunta de Ontem: o que te dá vontade de fazer quando o telefone não desfaz tua agonia?

Porque não sei, porque não sei ainda!

A melhor oferta que tive foi a de um amor passageiro, a acontecer nos intervalos do trabalho, entre os vãos das escadas, entres os papéis estocados do porão. Três dias seguidos. E ainda teve o alerta de que não era certa a entrega. Mesmo na urgência. Decidi deixar de lado. Apesar do beijo. Depois foi uma série de abraços e comportamento redundantes. De lá para cá ousadias acontecendo desde os olhares aos toques sutis de quando se quer apenas perguntar por quê? Indo e vindo. Olhos e alardes feitos de qualquer coisa que estivesse na prateleira. E tudo se resumiu àqueles dias, novamente. O que queríamos no mais escondido pedido de socorro. No mais franco dos desafios. Enquanto íamos aumentando os gritos e querendo por à prova o que não soubemos pelas bocas dos demais. Era um tempo em que nenhum de nós tinha a certeza de que sairia vivo. Mas ainda assim chegamos juntos aos funerais das certezas e estivemos, horas e horas, deitados na chuva. Enquanto todos os outros personagens se iam e deixavam apenas as figuras e as inesquecíveis vistas parciais de nós dois. Andamos juntos por um tempo. Mas o destino cobrou seu preço. Cá estamos. Você em qualquer lugar sem cobertura de rede talvez vivendo, talvez sendo entendida. E eu abrindo mais uma vez as veias sem cadência alguma. Esperando meu amigo acordar para perguntar-lhe o que faço com tom de perda exageradamente estampado em meus lençóis, nesses escritos que, juro, querem mudar de cor. J.M.N

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Anônimo disse…

Em quase dois anos de existência, o Palavras de Ontem sempre buscou acompanhar seus comentaristas. Alguns se tornaram seguidores, outros são amigos de longa data, outros ainda, como os anônimos, os identificamos (ou pensamos identificar) através das semelhanças de escrita, de uma ou outra palavra reutilizada. Devemos muito a esses leitores e seus comentários, pois sem eles não teríamos a chama acesa por esse tempo. A partir de hoje, abrimos espaço para esses comentários. Não há critério de escolha, nem privilégio aos mais chegados ou recorrentes. A única via de escolha é ler e sentir…

Para essa inauguração, “apresentamos” (sem ainda saber de quem se trata, mas com boas pistas) um comentário anônimo que de tão etéreo e bem desenhado, chamou imensa atenção. Achamos justo sublinhar que se trata de um belíssimo texto. Leiam e… Comentem!

“..."roubar-to" durante um bocadinho...nao na presença física que a essa sucumbe o que sinto(ou imagino sentir)e transforma-se em realidade...a feia , desprovida da mais íntima verdade que so consigo encontrar no que sinto sem ser dito...so uns momentos da sua alma...so para eu ficar mais um bocadinho nela gravada...so para que a minha presença nele nao se evapore assim....é "pecado" cada resquício de tinta que as minhas letras reproduzem...por to querer "roubar" por segundos...não no corpo...só na alma...mas eu preciso...de alguém que me veja e me perceba so com os olhos...sem que seja obrigada a dar sons ao mundo...que a mais não soam que sentidos falseados do que possa ser o que existe por dentro...desculpa...(pelo menos nisto consigo encontrar beleza nas palavras...deixam-me mostrar a todos o que não posso partilhar com ninguém )...*”

Postado em: Palavras de Ontem - 25 de janeiro de 2010 (00:11h)

Temas, linhas e outros finais

“Eu já passei por isso, sei bem reconhecer
o que já fiz. A tua dor é apenas o começo.”

F. Milaccari – Àquela que não me teve, 1974

Tua história não é minha. Não fui eu a abrir janelas no temporal. E, no entanto, estive lá comendo as gotas da mesma chuva que encheu teus olhos. Não é tua, minha história. Não foste tu a dispensar as amarras perto do cais. Entretanto estiveste no mesmo adeus, na mesma tarde, perto demais de descobrir fortunas e medos. Nossos tempos pariram tempos como errantes. Consumaram fatos equidistantes como a entrega. Não houve pauta para a estréia, nenhum romance. Apesar disso fomos fundo no que dissemos. O verbo mesmo que firmou os compromissos e pesares. A rosa esquálida que serviu de talismã. As mãos dançando nos emblemas das demoras e todo som do eterno das manhãs. Essas vivências abundantes dos nossos sonhos e mais aquelas que jamais existiriam são o nosso testamento. Inventário numeroso de bens e dores, mais desertos e palavras de amanhã. Nunca deixamos de ser independentes destes entes, os humanos que atendem por nossos nomes. E demos fim, capitulamos sem ciência ou heteronímias, sem averiguar acordos para o enredo. Uma história, uma vida, mil elementos. Coisas estas que jamais serão só minhas. E que te esperam sem apostos ou finais. J.M.N

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Do outro lado

Acordo derramado. Evidente e triste diante da aurora que me encurta o que as trevas me deram durante o sono. Não estou mais nela. Não estou mais em mim. E descubro onde eu a pertenço, do outro lado do que podem nossos beijos. Enquanto me perguntam as células o que haverá de ser dos meus sistemas. Estou inválido pedindo a volta. A meio caminho de descobrir o que ainda me consome dentro daquele riso. O que ainda me desprende desta realidade dos dias. Às vezes um horror por me saber secreto. E pergunto o que fez de mim tão adorado que deu fim a tudo que se construiu. As mesmas substâncias, no querer e no fim. No negro da noite um encontro às cegas e as mãos quase se tocam para iniciar um abraço sem fim. O que não tenho no real do dia, consigo no espaço-tempo adormecido. O que não me permitem os deuses diurnos, pasta esfomeado enquanto durmo. J.M.N

domingo, 24 de janeiro de 2010

Poeminha sonhado

Não houve farpas
ou uma grande decisão que se tomou.
Nem amantes com um filho
cujo pai no cartório não pisou.
Apenas essa veia
que aberta e sozinha
lenta se esvaziou.

Os documentos todos eu levei
meu passaporte, cartões de crédito,
certidão, o comprovante que votei.
Sei de onde venho
e posso ir pra qualquer cidade;
sei meus escolhidos,
mas não sei se me escolhi
pois ela ficou com minha identidade.

Já pedi pra outra me fazer esquecê-la
fazer calar o nome dela como um ruído
mas perto de outras mulheres
pareço usado, puído.
Perto de outras mulheres
me encontro antiquado
como um rádio de válvula,
como um poema rimado.

WDC

sábado, 23 de janeiro de 2010

Perguntas de Ontem V

O chão tem vezes de acordar mais frio e me garante que de lá não passo. Mesmo assim têm enganos meus passos. Sofrem de desrazão os anuviados. Não saíram ainda das noturnas felicidades daquele peito. Nem vão a lugar algum. Chega tem vezes de eu catar coragens para chegar gritando perto dela. E parar os carros e correr pela rua vomitando tudo o que me escapou mas não deixou meu corpo. A tarde tem sarça que incomoda até o fundo da alma, onde ainda existem formas esperando a consumação da volta. J.M.N

Pergunta de Ontem: o que queres de mais impossível agora?

Notas de Rodapé #7

Também ando a desmoronar. Cabendo numa gota de chuva. Incluído no esquecimento daqueles a quem esqueci de dizer que existia. Um cuidado, uma cama nova, uma nova receita para aquele almoço em família. Espécies de contato com o mundo. Coisas que só poderiam sair dessa minha imaginação aflita por não te ter aqui comigo. J.M.N

A vida em torno dessas linhas

“O ato de escrever não é afeito a juízes”
Cantídio

Não é certo que venha. Não é seguro afirmar que toda história vivida ainda permaneça intocável sob o olhar que se prepara para sair à noite. Onde, nesse tempo descoberto e inflexível, esteve dormindo toda a entrega, toda pungente inquietude descoberta em inverossímeis beijos de amor? Do outro lado destas cartas jamais enviadas há um sem fim de coisas latentes, quase indizíveis pelos meios frequentes dos amantes. Incrustada na formidável memória viva que constrange o corpo quando se concentra na derme faltosa de toque tão querido e perverte a razão do dia com tantos assaltos, que se torna impossível manter o rumo. Não há justificativas que caibam nos mapas desfigurados, na promessa fundada em força que ambos não tinham. Porém, existem ainda perguntas a fazer. Existe algo que faz os punhos cerrarem e as linhas nascerem ácidas, diretas e públicas como afasias da existência diária a envolver o discurso pronto de superação e pontos finais. Onde nasceu a alegria da redescoberta pela vida e pela felicidade mútua. Onde se fundou um pertencimento glorioso como a farta chuva da cidade a que pertencem, assobiam agora os ventos da distância e dos descaminhos. Como esquecer, quando tudo no universo de madrugadas e de beijos vários desfrutam do sentido antigo de estar contido em outro feminino amanhecer? Tudo está cansado e devagar. E alegrias frutificam esperançosas de que sejam pequenos passos de um caminho futuro. Para o mesmo ponto ou para lugares completamente distantes, estas palavras de ontem consagram o que passou, mas que de alguma forma, ficou. Muito mais relíquia que as jóias do tesouro, muito mais viva que toda vida em torno dessas linhas. J.M.N

Os Piratas do Rock

Há tempo que não falamos sobre filmes e não, obviamente, porque inexistiam bons filmes sobre os quais falar. Sempre há. Que não sejam lançamentos. Há uma interminável galeria de excelentes películas por ai. Prontas para serem revistas, comentadas e apreciadas com a compulsão adita dos cinéfilos ou com a moderação daqueles que se divertem com cinema quer de boa qualidade, quer de má.

A questão é que não havia “pegada”… Explico: não havia aquele sentimento de enlevo e felicidade ao acabar de assistir a um filme e ter, imediatamente, o ímpeto de voltar ao começo e assistir tudo de novo. Não por ser o roteiro um primor, não pelos atores serem espetaculares, não pela produção primorosa. Não! Tão simplesmente por ter sido tocado num canto qualquer de nossa memória, onde desejos adolescentes se concretizam repetidas vezes em noites de sonhos felizes.

E este, para mim, foi o caso de Piratas do Rock. Comédia dirigida por Richard Curtis e estreada pelos sensacionais Philip Seymour Hoffman, Bill Night, Rhys Ifans, Nick Frost e Keneth Branagh, que tem ainda a virtude de transcrever para o vídeo a história mal contada das rádios piratas do Reino Unido, as quais ajudaram a divulgar a música rock e que abriram espaço para a divulgação de talentos hoje reconhecidos como clássicos da música mundial.

Lançado em 2009 e considerado por muitos críticos um dos melhores filmes dos circuitos alternativos, Piratas do Rock conta a história de um grupo de DJs que nos anos 60, na Inglaterra, comandam uma estação de rádio pirata instalada num velho pesqueiro. De pronto, o argumento é cativante e a trilha sonora é sensacional incluindo The Kinks, Martha Reeves and the Vandellas, The Who, Françoise Hardy dentre muitos outros.

Neste aspecto, o destaque pessoal vai para a tocante sequência em que a trilha de fundo é You Don't Have to Say You Love Me, de Dust Springfield. Aliás, excelente fundo musical para os humores de escritor dos dias recentes (especialmente pelo título). Mas a viagem musical não pára por ai. Espraia-se, ademais, nos aspectos destacados pelo estilo não convencional de Curtis, onde o rock and roll é mostrado tal como é: nada politicamente correto e cultivado sob a rebeldia e o carisma daqueles que tiveram coragem para infringir leis e se dedicar a descobrir pérolas do pop mundial.

Qualquer outra coisa que se diga vai ser redundante, então, como é sempre nosso costume, gostaria de finalizar sugerindo que assistam e prestem atenção ao personagem e à atuação do jovem Tom Sturridge (Young Carl) o qual, na modesta opinião deste comentarista, retrata o ideal de muitos amigos apaixonados pelo pop rock de todos os tempos. Como eu. J.M.N

Trailer:

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Perguntas de Ontem IV

Agora todos os pratos já estão lavados e secando devagar. Agora ela acabou de organizar os sapatos segundo um critério qualquer. Um par dos dele, um par dos dela. Pra que pisem juntos todos os caminhos, ela explicou pra si mesma. As fotos da última viagem a Portugal, decidira, não iria nenhuma para o porta-retratos. Ficariam numa gaveta próxima, como histórias deliciosas de contar. Os vestidos, organizados segundo as cores e as ocasiões, perderam a companhia das calças jeans que ele levou. Tudo estava como no começo, mas algo se perdera desde que ele voltou da última viagem. Tudo estava como no começo, menos a lembrança daquela voz que já fora terna, mas que agora repetia sem parar que talvez não houvesse retorno.

Pergunta de ontem: O que diz essa voz que não cala dentro de si?

Brados, constatações e alguma poesia

Muito no íntimo dessas coisas que digo, reside um medo por não ter encontrado mais aqueles abraços guardados sob as asas dos anjos. E quando o calor se tornou insuportável, minha última esperança foi me jogar de cabeça no riacho. Eu falhei. E como disse isso às pessoas que amei foi a mais bruta façanha de tantas coisas absurdas que fiz na vida. Toda vez que encontro os papéis de presente, dou um minuto para recuperar o fôlego e, insistentemente, fico atrás das estrelas cadentes, dos cardumes de memórias epiteliais do último toque que amei. Confundo-me na inconstância dessas entregas e sou, nesses minutos, tão infantil e desprotegido que, não raro, recorro aos heróis dos mitos, aos personagens das revistas que foram de meu irmão mais velho. A missão de convencer-se da humanidade é a pior das esperas. Acontece, dizem, bem perto da morte. Voltando aos meus infinitos: quando chega aquele mês novamente e sinto que seu rosto está quase apagado, procuro um dia inteiro de sensações ao seu lado e vejo nisso a mais normal ascensão à loucura. Como não fosse suficiente acreditar que fui amado. E por mais que fujam as carnes de meus ossos, o compasso de meus batimentos cardíacos, estarei certo sempre que o argumento for afirmar que fui feliz. E em teus braços. Sob a flor que distinguia teus abraços daqueles desertos que percorri. Acorde, acorde amor noturno. Venha ver de que são feitas as minhas desistências e corra desatinado pelos campos verdes de minha esperança. Enquanto o dia de minha morte não chega, enquanto não praticam comigo a traição, sento à mesa preparada para o almoço e quase esqueço que não há o que comer, senão por quês. J.M.N

Benevides, 02 de janeiro 2010.

Excertos Terapêuticos XX

                       I.

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.

Hilda Hilst – Do Desejo

Moradas

“Dentro da casa em que nasceste és tudo...”
Olavo Bilac

Minha carcaça é uma casa alugada cujo dentro exponho com as portas sempre abertas. Meu grito é uma tarde de sol duradouro em cujas linhas e borrões ecoam meus alicerces. Minha pena é a razão mais pura em cuja feitura condeno os afetos a trabalhos forçados. Meu riso é como a chama que ela acendeu num dia cinzento, vai e volta conforme ela utiliza o fósforo. Meu sono é uma barragem, uma contenção daquilo que restou de nós. E freqüento auroras nestes instantes, como sigo o cimo das cordilheiras no desamparo. Meu olho é órbita inaugurada em seus olhos. É uma forma perfeita para o corpo dela. Entra e sai dos abandonos como mocinhas em dia quermesse. Minha letra é algo doce quando a quero, algo estranha quando a tenho e algo mentido quando a odeio. Meu chão é minha última jornada. Para onde vou depois do fim. De pó e rimas, de embolias e perdões cansados. Vou para o início refazer meu evangelho e dizer novamente que desejo ser um homem. Espero voltar aos passos que me deram um dia. Às praças que escutaram minha entrega. Às vigas que sustentaram minha solidão. Espero ter um teto, um pouco de comida e o morno do abraço dela para estar convencido de que valeu à pena. J.M.N

domingo, 17 de janeiro de 2010

Escuta pretérita II

Engineers – Three Fact Fader

Do livro dos bons modos musicais: em qualquer circunstância, jamais ouça uma banda shoegaze nos fones de ouvido. O conselho é bem vindo, já que essas bandas de meninos extremamente tímidos costumam se esconder atrás de paredes de distorção, só pra poder tocar olhando os próprios tênis. No caso dos Engineers, a voz sussurrada de Simon Phipps faz um contraponto interessante nas músicas com a distorção geradas por até três guitarras. Não esperemos músicas pra dançar, as canções desse segundo álbum (tem ainda um EP) são construídas lenta e delicadamente, como castelos feitos nas nuvens. Prometo não fazer mais essas analogias com o nome da banda e nem brincadeiras com a rena psicodélica da capa. Ouçam.WDC

Escuta pretérita I

 

Continuo a minha inconstante peregrinação pelos sons produzidos em 2009.

Bill Callahan – Sometimes I wish we were na eagle

Quando ouvi o primeiro verso da primeira música desse álbum, Jim Cain, tomei um susto. Parece que o cantor estava do meu lado, e pior, a voz dele fazia a minha espinha tremer. Tratava-se do norte americano Bill Callahan. Dono de uma voz tão surpreendentemente grave que nos faz sentir como uma criança que recebe conselho do pai.

Apesar de ser apenas o segundo disco que ele assina com o próprio nome, Callahan já tem uma extensa discografia com o codinome Smog ou (Smog). O som tem pequenas pontuações de country, arranjos delicados de cordas, mas quando Callahan começa a cantar quase a gente não presta atenção nessas coisas.WDC

 

Todo poeta terá de se explicar um dia

Para todos a quem eu devo explicações.

As palavras causam pensa. Fazem caminhos tortinhos no saber da gente. Causam lívidos segredos de escuros quartos, de escondidos encontros. Cada oração ao ser criada se torna imediatamente uma lâmina, cega ou afiada. Que separa o que vai de bom em toda a carne. Destinada aos gentis passeios de um domingo qualquer ou às guerras na hora do fim. Cada letra se comporta como parte e nunca faz gosto na alma, quando sozinha. Esse é o segredo de dizer tudo integralmente, sem deixar restos no cimo da língua, nos cantos da casa do corpo. Esperando que os silêncios se encarreguem de esquecê-las. Silêncio serve apenas para ecoar com mais vontade o que se disse. Têm medo de estarem sozinhas essas meninas, palavras, e reagem furiosas quando lesadas, quando atraídas para bocas sem beijo, sem falas de amor. Um dia tenho de escrever novamente para os teus. Comer o pão da casa dela, cercado de perguntas clementes sobre o que sentia por ti. E repousar meus olhos sobre tua cicatriz, desejando ter sido eu a separar e unir tua pele. Escrever um poema acima de tuas vergonhas e explicar o que eu quis dizer quando afirmei que seria para sempre. J.M.N

Estudos em prosa e sentimentos IV

Estarei lá pela manhã. Basta convidares tua amiga e sentar a poucos metros de mim, dando a desculpa interna de ser apenas um encontro casual. Não pedirei açúcar para o café. Não deixarei as moscas se aproximarem. Não cobiçarei mais do que dois croissants. E no último gole, verei teu rosto cintilante abrindo os tais sorrisos. Aqueles que já foram escravos de nosso despertar conjunto. J.M.N

Perguntas de Ontem III

A cada grito a distância evoluía e surgia com o que estava debaixo de nossos trapos. Trazia para a colcha de cama algo que tinha forma e desfazia a calma das manhãs. A cada dúvida de si, ela entregava culpas para desdizer meus acalantos. Troquei tantas farpas que tive vergonha de mim. E finalmente foi chegada a hora. Finalmente um outro nome cobriu os elos entre o que tínhamos e o que ela deixou para trás. E o que de tanto se tornou mágico, enxugou-se como uma incandescente manhã no deserto. J.M.N

Pergunta de Ontem: o que de tão intenso te faz sentir que não há saída?

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Abstinência

No fundo, ao escrever, Toxic Girl do Kings of Convenience.
Deu nisso.

Nenhum resíduo em meu despertar, mas minha boca ainda tenta se acertar. Nenhum gosto está como antes. Nenhuma veia está intacta e por muitos meses eu senti o âmbar de sua desumanidade afetar a passagem dos meus nutrientes, como pedestres chocando-se nas ruas estreitas do centro de uma grande cidade. O contorcionismo exibido de suas partes a me tragar para dentro de suas rotas, horas depois me enjaulando ainda sedento, como um animal aturdido, encurralado. Meus brônquios se partiram. Meus feixes nervosos, bainhas de mielina e faculdades de somar e multiplicar diminuíram. Consideravelmente. Roto nos becos. Pedindo tragos dos alheios rostos. Abraços das senhoras felizes de cada praça por onde andei. Um farrapo de longe acometido pelas náuseas e impedido pelo muro altíssimo da verdade. E apesar de tantas feridas e jejuns, ela me trouxe ao caminho. Sem saber me tirou do limbo de mim mesmo. Arrastou-me com sua colossal disposição para tudo do terreno em que finquei meus alicerces. E me fez mudar radicalmente de atitude, desenvoltura adquirida para continuar vivendo. Nenhum exame acusa sua existência e meu sistema já quase se esquece de que lá esteve. É justo ai, nesta hora de reconhecida vitória sobre seus efeitos mais daninhos, que a encontro nos ornatos de minhas linhas, nos cantos de minhas páginas, refeita em pó e harmonia. Até quando a memória celular que me redime, venha cobrar a gestação de outra loucura. J.M.N

Para ler escutando, ou não (letra)...

Essencial

Ela fez lembrar de como eu era naqueles anos. De como arrumava minhas roupas e fingia ser o que não era por dentro e por fora, um estranho que eu frequentava constantemente, esperando um acolhimento que não vinha nunca. Ela fez lembrar de como eu transitava em todos os rumos, muito antes de os demais pensarem ser possível e de como liguei nosso mundo ao mundo deles, daqueles outros que pareciam ter a chave de nossa felicidade. Quão atávicas estas lembranças e conquistas. Quão bulímicas. Quão belas e imortais as palavras dela inaugurando minhas novas esquinas, meus novos pátios. Alhures um gosto amargo de despedida, a solda das vigas de minha estrutura trabalhada no breu da noite, a procurar olhos desavisados. Um porto ficando cada vez menor e as violetas ficando cada vez mais interiores. Impressionante mesmo foi seu tato de apanhar minhas impressões mais temidas e transformá-las, desde as dores, em cuidados, risos e tapetes macios para um sono alumbrado. J.M.N

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Mais um texto. Desculpe (ou Pergunta de Ontem II)

Hoje durmo melhor porque a minha madrugada não espera telefonemas. Hoje sei que quem espera é ela. Sempre esperou que os caminhos a perfizessem; que as águas abandonassem suas margens para banhá-la durante a época dos transbordos; que a violência terminasse, enfim. Hoje que ela leva as minhas últimas irresponsabilidades na bolsa, entre as chaves e algumas apostilas. Hoje que, na mão em concha, ela abriga todo o meu dentro. Hoje que ela tem as minhas entranhas, a espera, volúvel, mudou de lado.

Pergunta de ontem: Qual a pior espera?

Cartografia do indevido

Pedra, pedra, a constância tua me acaricia. Culmina em minha história a certeza de uma eternidade bem maior do que a nossa. E as coordenadas da partida são o símbolo. Os traços óbvios da tua hidrografia ao escrever estas pobres linhas, curvas linhas. Em cuja foz verte-se meu fazer diário. Toda noite ponderando desistir. Todo dia esquecendo um pouco mais. Teus sedimentos depositados em saudades. Deitado nu em chão de estrelas, olho frágil tua forma desfigurar-se como areia em ampulheta. Que vai desgarrando pouco a pouco das paredes de minha memória e derrama-se, feito olhos cansados de partir. Pedra, pedra dá-me esperança. Refuta minhas certezas mais infantis. Sai de teu lagedo rolando até a ribeira, juntando-se à parede do tempo que um dia desviará o curso desse rio de mil anos. Saia do caminho de minha fuga e esconda em seus entalhes a palavra mítica que me constrói e finda. Me chamo homem como qualquer outro. E tenho idades e roupas e desesperos. E sou mais teu do que qualquer outro jamais supôs. Sendo mais meu do que pudera tua existência. J.M.N

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Perguntas de Ontem I

A primeira vez que li Garcia Marquez pensei que o ofício de escritor era algo muito complicado e que demandava tempo demais. A primeira vez que estive diante de uma foto de Henri-Cartier Bresson pensei que a tecnologia dos equipamentos atuais estavam nos distanciando da emoção de fotografar e que os bons tempos da fotografia já passaram. A primeira vez que ouvi a voz de Bill Callaham desisti daquelas aulinhas de canto, na verdade desisti até de cantar no banheiro. WDC

Pergunta de ontem: O que, de tão belo, te deixa desamparado?

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Ela atirava em mim

Sobre a música Bang, bang, Nancy Sinatra.

Lembra do tempo em que brincávamos? De quando levávamos às últimas consequências nossos jogos a dois? Era um tempo em que as balas eram de festim e o rito mais repetido era a entrega imediata, com foices e cravos brancos ao redor da cama, onde toda a estrutura da vida e de nossos corpos cruzava oceanos e vencia tudo. A música tocava e sentíamos os sinos distantes se aproximando, fazendo catedrais em nosso parapeito. E seguiam-se Sanhaços, Cravinas e Gaturamos nos páramos de nosso descanso, ecoando apenas para nosso deleite e preguiça. Ganhávamos peso, perdíamos os dias, contávamos as horas ao contrário, como passageiros do tempo, como as lesmas e seu arrastar eterno, soçobrando por sobre toda a história do mundo. E fomos à Marte, Inglaterra e faltamos às visitas de finados na onda de nos celebrarmos. Vivos, acima de tudo, um no outro. Costumávamos correr junto, pois junto era o ritmo de nossos pulmões. E perdíamos tudo e ganhávamos vento e frescor de auroras e abraços idílicos. Como sempre a porta abria, fechava e lá estávamos acometidos pela febre. Ilustres impostores na convenção das verdades de artifício, no sacrifício dos tolos que sustentam papéis e não os romances. Você costumava atirar de perto, eu de longe. Era uma guerra feita de estridente entrega e se acabou sem territórios conquistados, sem honrarias e medalhas. Acabou no campo da diplomacia, com ameaças veladas. Costumávamos atirar um no outro, mas sempre vivemos para contar histórias. É exatamente por isso, que tenho tanto o que lembrar e esquecer. J.M.N

Para ler escutando...

Minha querida, o que eu posso fazer?

Sobre a música, Honey Child What Can I Do?
Isobel Campbel e Mark Lanegan - Ballad of broken seas

Contaste a história mais triste que se podia contar. E perseguias borboletas enquanto a trama se desenvolvia. Demorou um relógio inteiro para o desfecho. Eu estava aturdido, esperando aparecer em teus relatos. Mas a noite do último verso chegou e eu não estava lá. Não fazia parte de suas crônicas. Queria te dar a minha última esperança, mas o que eu posso fazer, afinal? Gostaria de saber alquimia, de poder responder tuas dúvidas, de te acompanhar naquela viagem com os amigos, mas estou preso no corredor do destino, por enquanto. E por enquanto apenas desejo que retomes o sentimento familiar que nos uniu, que nos fez acontecer novamente. Gostaria que entendesses meu recado ao deixar a porta aberta, pois estou tão só nesses escritos pobres e amorfos. Talvez eu seja antiquado, com ímpetos e sentidos que não existem mais, estão fora de moda meus amores doídos e para sempre. Mas minha querida, o que eu posso fazer? Ainda não sei responder a tudo, ainda não encontrei nossas chaves e roupas, mas posso passar um dia, para caçar as tais borboletas que sempre quiseste. J.M.N

Para ler escutando e ver aqui...

Mulheres

Todas elas me encantam. Guardam em suas belezas específicas meus horizontes. Sou delas sem que me saibam. Sou tão menos meu diante de seus olhares. E me descubro sereno, bravo, aliciante quando lhes falo e recobro suas asas, ao dar-lhes risos e palavras, ao retocar seus nomes e a divindade de suas substâncias. Mas as vejo em seus espelhos duvidando, colocando-se abaixo de seus quetais. E lavo, oro e trago artes. E ofereço a constância e o abrigo de meus olhos e lhes dedico a flor aberta e minha lira, mostrando que sou mais delas do que elas são minhas. J.M.N

O que ficou

Eles passaram pela porta e deixaram velhos remendos meus recosturados, fortalecidos. Lá no fundo, não se foram. Sou deles como festas em família, avelãs em tortas doces, camicazes em atos desesperados e afins. Eu vi a mesa arrumada sem a permissão e senti nisso que nos pertencemos, como o que nunca senti com povo nenhum. Eles vêm de Algures (indizível lugar com A maiúsculo), flanando, eternos andarilhos do tempo secreto como tudo o que mais amo. Não precisam pedir para entrar, entram. Não precisam pedir para ocupar minha cama, ocupam. Não precisam, ademais, pedir desculpas por qualquer engano, pois mesmo quando há tropeços, existe amor. Eles adormeceram bem ao lado e dava para respeirar seus sonos enquanto eu ia me consumando num corpo cansado. E dava para sentir a leveza de nossa história fazendo inveja ao mais leve dos elementos. O amanhecer foi mais que feliz. Foi casto nos sentidos únicos que eles me fazer ter. Sim, eles cruzaram a porta e viajaram, mas seus cheiros e olhares e dizeres ficaram. E ficaram no lugar onde não se precisa de chaves ou passagens secretas. Ficaram dentro do meu amor mais imenso. J.M.N

Leve instante, vago império de acalantos

Mais que longe o som de um riso me invade, qualifica minha displicência de enfrentar-me – esse dragão medievo e destrutivo. Em batalha contra bárbaros alívios, constantemente me entrego à mocidade que me acerca. Cabelos longos, pele bronze e cativante. E num minuto a linha fina do olhar dela me limita e cura. De bravo soldado em longa campanha, fica o poeta. De aço e lanças a defesa desfaz-se pluma. De manso e fugidio o entregar-se pouco a pouco se transforma em visgo. Evidencia-se a trama homeopática do cuidar-me. Faço a ela o convite de me esperar num seu riso, para lhe explicar o que faço depois de me entregar. J.M.N

Estudos em prosa e sentimentos III

Seu olhar noturno me entitula. Ordena-me nos serviços exclusivos de nosso mundo. O universo em dois - imensidão compartida que me amplia e diminui. E nesta expansão e contração perco as propriedades corpóreas que nos atraem e recomeçam. Há um retorno constante às coisas que menos dizemos. J.M.N

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Livro na estante

Livremente inspirado na música put the book back on the shelf
Belle and Sebastian

Escrevo coisas que ninguém lê. Escrevo como se meus dedos aguentassem essa tortura, essa escravidão. E tudo isso para ser deixado numa prateleira esquecida com diversos catálogos de produtos inúteis para pequenas reformas em casa. Pergunto se você é feliz. E faço isso para te aviltar, para gozar de tua desesperança. Sinto pena dos caminhantes lá de baixo andando na chuva que desfaz a pureza da luz da noite. Quando sento no sofá, à mesma posição que ocupávamos, penso que agora escrevo apenas sobre mim e sobre minhas desistências. Não chego a falar comigo. Sinto que não me frequento e tardiamente dou um nome àquele poema em terza rima. Mas ai, lembro que ainda existem cartas, existem ensaios e uma tese inacabada. Meus poemas morreram onde o silêncio faz silêncio sobre si. Onde ninguém domina a destreza de enamorar-se. Poupo os últimos tostões para uma garrafa de vodka. Enquanto o apresentador do telejornal fala com aquela voz conhecida, deixo-me vagar por minhas notícias. No front norte uma guerra, nas cordilheiras a saudade do teu toque e tudo em mim vira litros de sangue. Você está realmente feliz? Você fala comigo no seu sono vazio? Anda comigo a arrumar meus livros, vem. Lerei algumas linhas importantes e escreverei aquilo que desejares. Serei teu por encomenda. Ácido, maldoso, eternamente romanceado e destruído, como as linhas que escrevo. Como o livro que tem o teu nome e dorme empoeirado na prateleira mais alta da minha estante. J.M.N

Para ler escutando...

Excertos Terapêuticos XIX

"A nitidez de minhas lembranças a partir daquele momento me assombra. Adquiria uma consciência mais atenta dos outros, de mim mesma. A espontaneidade e um egoísmo fácil sempre haviam sido para mim um luxo natural. Sempre havia vivido. Ora, eis que aqueles poucos dias me haviam perturbado o bastante para que fosse levada a refletir, a me encontrar vivendo. Passava por todos os horrores da introspecção sem, por isso, reconciliar-me comigo mesma."

Françoise Sagan - Bom dia, tristeza. p. 51.