quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Inquietação

Sobre a música Inquietação, José Mário Branco
(na cadência da interpretação de J.P Simões)


O que sei eu? É o que pergunto. E pergunto não a ti, não aos outros. Pergunto a mim, muitas vezes, repetidas vezes. Não há escolha sem arrependimento. Não há vida sem morte e, de certo, não há razão sem loucura. O que nos coube, sacrificou todas as prudências, todas as inércias e nos pôs em vias de colisão, largados como em banguelas a testar a velocidade sônica de nossa entrega, de nossas disponibilidades, com as carnes trêmulas a querer-se em potência insustentável. Com tantas guerras travadas é óbvio o desconforto da paz. São argumentos de silêncio, pó e iluminuras. Na cadência da fala, escondo o que mais tenho vontade de dizer. Meus mistérios multiplicados vão-se intrusos em outras estrofes, como leopardos sedentos. Espelho-me pequenino nas garatujas de uma criança. Na entranha destas sentenças corre ainda nossa textura, nossa infeliz tendência ao imaginário sobreposto, às coisas extravagantes do desejo. Corre em mim – e agora só posso falar por mim – a estrada fulgurante das conquistas e o contragosto das cenas banais de domingo. Óleo e vício e entrelinhas – estes são os elementos que me procriam, a saber. Meu credo agora é palavra para leigo, sarça de incompletude, é o que me falta embebido de romance, lírica e uma boa dose de inquietação. J.M.N


terça-feira, 28 de novembro de 2017

Quase nada e o mundo inteiro

Persigo as peças que faltam. Corrijo rumos. Sobretudo, eu me adianto nas minhas estranhezas. Adentro culpas, precipícios e iguarias resultantes do assalto à tua blusa, o que eu encontro por lá. Depois, minhas mãos paridas dentro do delta. O teu. Úmido que saio. Tão cansado e cheirando a nós em novelo e arrebatamento. Uso primeiro uma cota de cansaço e depois a tragédia. Digo que já vou. Para sempre. Espero teu choro, mas ele não vem. Forcei demais. Eras minha havia minutos. Volto a tentar temas. Parnasianismo barato. A forma pela forma. Mas resistes. E eu me deparo com a coifa de uma raiz que me vai rasgando. É a tua presença. Violenta e quase repugnante. Volto da rua mais de uma vez. E vou deixando os pertences. Regurgito crimes, Manoel de Barros e outros tantos alaridos. Priscando, priscando, sempre em centelha e devaneio, sou um sonho por inteiro. Volto para antes de saber o que fazer com meus pertences. Minha carne, meu suor (que provocas mesmo parada, mesmo seca), minha língua intransigentemente posta a serviço de te pedir desculpas. Pelo que eu não fiz ainda, talvez pelo que nunca farei. Pois, afinal, não moves um músculo sequer. Não percorres a distância quase infinita entre eu te abraçar e tu me teres. Toda molhada, cheia de vinho pelas ancas e olhos, teus pelos, sentinelas, esperando minha derrota. Amontoados no centro perfeito da tua arquitetura. As mãos descompromissadas com o mundo e com meu amparo, em forma leve, dedos em leque, como as mãos dos estudos de escultura de um grande mestre. Tua leveza me enfarta. Eu te cheiro. Intensamente. Como quem cheira a terra no cio. És toda meu cio. És o romper bravio das ondas de um maremoto. E sinto teus tentáculos me enchendo. Deflorando. Vou ficando fêmea também. Muitas coisas eu fico. Fico em cima do meu desespero, lacerado por minha ignomínia. Sujo, apelando por uma mão que me salve. E, finalmente, estás. Não me tomas, não te mexes. Não existo mais. E o que me lembro é de acordar cheirando a nada. Desavisado do fim da estrada. Oculta apenas por um trapo, minha vergonha. Levanto de onde estou e fico frente à frente com o que se me sobrou. Enquanto limpas a mesa, ajeitas os cabelos e ordenas os discos que ouvimos, escuto larilás, teus lábios infernais entoando as músicas que eram apenas minhas. Sem força e sem vontade digo minha nova fome em voz alta – eu quero uma eternidade contigo. – Desculpa amor, só posso ficar até as três. É o que dizes. É o que tenho. Já me basta. JMN.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Duas esfinges

Perguntei-lhe para que servia a tira de pano amarrada à fechadura da porta do quarto de hóspedes. “Descobri que assim posso abrir a porta mais suavemente e não a acordo, sabes que tua avó precisa descansar”. Era de manhã cedinho. Ela acordou duas horas antes de mim. Foi até à padaria. “Dois carecas branquinhos, por favor”. Voltou para casa, tomou banho e ficou zanzando de um lado para o outro na sala. De vez em quando espiava pelo corredor para ver se eu já vinha. “Me conta como estão as coisas por lá, as minhas amigas já sabem, que bom que deu tudo certo”. Ela repetiria isso inúmeras vezes para quem quer que fosse, eu sabia. “Seu trabalho é bom? Como são as pessoas? Fulana ainda chora a morte da filha, disse que não se endireita, isso de perder filho é uma merda”. Meu café teve gosto de infinito. “De repente eu sento e dói aqui, dói ali; mamãe está bem melhor, mas se esqueceu o que é um sino [risos]”. Não há maldade em suas palavras, mas o nervoso de ver isso tão próximo de si, o esquecimento. E nisso, somos iguais. Suas mãos estão mais enrugadas do que a última vez em que reparei. Meu tempo passa por essas mãos, passa por seus olhos claros, pelo jeito como se intromete nas filigranas do que faço até hoje e isso me dá um prazer enorme, o que no fim das contas tem o mesmo peso involuntário de um incômodo constante por perceber o quanto sou feito dela. “Ainda tenho muito que fazer, não é fácil, dormiste bem?, vai que teu trabalho é muito longe. Espera! Me dá um beijo”. Um beijo que comporta tanta aflição e saudade, medo e ruptura, mas, sobretudo, bons sentimentos. Saio apressado. “Tchau, tchau, tchau”. Três vezes para ter certeza de que eu precisava sair e eu respondi ‘até mais’ bem baixinho, com medo de que fosse para sempre. Meu dia ficou entre política, indústria, um pouco de psicanálise geral e, debruçado numa aflição que para mim se confundia com o gosto do regresso, não podia esperar por vê-la novamente. Volto aqui e ela simplesmente me cuida!? “Quando chegares tem aquele arroz de que tanto gostas”. Ainda nem tinha saído e ela já sentia falta. Preciso aprender essa antecipação belíssima da saudade, como se fosse uma pré-saudade, uma coisa que chega antes e anuncia que vai doer, mas logo vai passar. Minha presença incita isso? É o que de melhor o dia me dá, a brevíssima certeza de que sou tocado pela coisa própria de quem se encontra consigo mesmo, a sensação de pertencer. Acabo de entrar. Sei que deixei o quarto arrumado, mas ele está ainda mais limpo e cheiroso, com toques de quem esteve entrando e saindo de lá, melhorando em detalhes finíssimos os ajustes já perfeitos do amor. “Tira a camisa, está molhada, assim gripas, assim podes até ter asma de novo”. Claro que eu tiro, claro que eu penso que nada mudou e por uma fração de segundo sinto um incômodo estúpido por estar em suas mãos. “Vamos comer?”. Espera!, eu digo. Me conta do teu dia. Seguimos ao sofá da sala e, sem resposta ela aceita o peso do meu cansaço em seu colo. Não houve palavras dali em diante. Ficamos apenas sendo. Enfurnados um no outro com nossos enigmas e segredos. Eu o filho. Ela, minha mãe.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Quando eu resolvi me esquecer

(coisas perdidas de 2004...)

Sem dó nem compaixão me esqueci. Dia cinco de mês e ano quaisquer. Em meio ao abraço, desaparecido. Promessas de eternidade quebradas. Amado eu já tinha sentido ser. Porém não naquela altura. Tinha esquecido qual era o gosto de saber-me. De qualquer jeito, acabara ali minha unidade com meu antes. Deu-se um salto no tempo e passei a me relatar feito história acontecida. Nada mais disse. Você não me obrigou e, mesmo assim, eu fiz um discurso de abandono. Fiz meu monstro literário nascer bem ali. Escrito a sangue no primeiro dia de meu esquecimento.

Você não tinha culpa. Não tinha peito. Sequer uma cama para abrandar minha luta. Não tinha fósforo para o incêndio. Eu me despia e era seu, apenas isso. Um nó no peito. Dó de não me ter por perto. Endireitado como um esquecido. Como um violado. Minhas palavras nasceram sem mãe nem pai. Deuses e Diabos contribuíram. Carne de primeira aquela sua. Jamais voltei. Perdi o terço. Minha avó sabia quando me indicou Santo Expedito. Estou preso diante de mim. Esperando do lado de fora para entrar. E vejo saindo os arrependidos, os mal vividos. E eu não saio nunca. Tampouco entro.

Você não tinha jeito. E eu não tinha direito de ser sem mim, antagonista desta vida inteira. Tanto quanto eu, você era sem ser. Não tinha trejeito que recompusesse. Eu sabia tão pouco sobre mim e mesmo assim, fui adiante. Vê se me esquece. Cresce e desaparece. Nunca mais volte ao passado que lá eu sou apenas meu. O que escrevo, escreve-se e fala sobre amanhãs e postais. Meu monstro dorme insuperável e eu, apenas esqueço uma ou outra palavra. Meu bicho, se você não sabe, é uma mulher que nunca existiu. J.M.N.

Para ler escutando...


Excertos Terapêuticos

"Espalhou-se que estava morto, louco, sujo das lamas da rua, seus trapos fediam, sua cara era outra. Achavam que se o deviam chamar pelo nome da pior das bestas. Perdera a propriedade de ser gente. Grunhia. Enfezava-se por qualquer besteira. Qual o quê! Estava perdido da esperança. Prenderam-no num quarto escuro e perguntavam-lhe insistentemente qual sua maior culpa. Ele disse mil vezes: não a ter amado mais. Não ter sido menos meu. E viu-se diante do que fora incapaz de admitir. Não havia mudado em nada. Não fedia. Seu nome era comum e registrado em cartório. A prisão era um sonho recorrente. A culpa esta sim, alimentava-se dele e dele extirpou suas melhores horas. Não estava sob a mira de ninguém. Ninguém o perseguia. Quedou-se morto em si mesmo. Arrependido de não ter dado um último beijo, não ter sentido a respiração dela em uma última noite em claro. Voltara a um tempo de pouca ou nenhuma comunhão. Tempo antes do amor."

Cantídio - Livro das culpas perfeitas

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Monólogo à guisa de salvação

Nasci na forja dos desatinados e fiz razão sem ter nenhuma. Sou o oposto do que o medo rege, a impossibilidade, paralisia. Sou caminhante, puramente. Sempre em movimento está meu astro. Quando veio a mim o primeiro homem, comi seu casco. Como uma besta a pedir divindades. Sou o que sou. Quase inteiro. De certo, risonho. Desses sorrisos que quando em quando enchem teatros. Sou mais da pena e das escrituras que quando entendo saber de menos, escrevo mais. Meu mundo passadiço é uma história mal contada. Caibo entre teus braços. Toma-me, senão escorro. Afeita-me, senão desgraço. Em tua boca roube o ar que me anima. Era um beijo lancinante e quase escravo. Quando te vi desgraçada e branda, acendi. Pus pólvora e chamas entre teus músculos. Voltei a escrever o que ninguém habita. Dentro do meu corpo de palavras desapegadas cabe bem mais que a eternidade prometida dos amantes. Muito mais que as paralelas de Euclides. Não os encontraremos nos saguões finíssimos. Sou do brejo e da fome. Do seco deserto de muitas luas. Escrevo essa claudica oração sem améns, sem anjos que a repitam. Justamente por saber que a poesia a tudo enfrenta. Inclusive essa ferida recém-aberta. Essa pústula flamejante que me desassossega. Como impedir que sintam pena do que eu choro, agora depois que todos os mortos me atropelam? Como pensar que estive em Gaza e na Macedônia, quando eu estava perdendo as forças dentro dela? Aqui e ali me aborrecem e no vago enterro desse meu corpo, deixei bem mais que uma oferta. A verdade desabalada em página branca. Fui senhor de dois castelos e um bordel. Nos primeiros fiz fortuna e no último causei nos ventres. A ululante canção das eras. Pariu-se o que deixei macerando por anos. Era minha solidão acontecida. Deu-se que na pessoa que lhe deu forma, a própria história acontecida era a minha. Não sei o que digo senhores e senhoras, mas de lambuja botei na página o que me intriga: pode qualquer Deus me salvar das paixões? Pode qualquer humano me impedir de ser sozinho? A resposta deixo a ti, quem me lê e ri. Cretino escrevendo baboseiras. De fato, balbucio algumas letras. A palavra que me falta é de um azul impossível. Eterno seja a página que me suporta, pois que não mais me suportam essas mil vidas. 

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Fragmentos

As partes deste sonho misturadas
São como âncoras de um barco à deriva
Falíveis, dançando nas águas
Sem tocar o fundo
Tudo se encontra nestas partes
Meu corpo que antes respondia
A janela branca do fim da rua
Partes do coarador do quintal
E tua presença
E tudo, ao mesmo tempo
Se perde nos fragmentos
A verdadeira ousadia, o olhar
O frêmito do dia da partida
A vontade de não voltar jamais
A presença sem forma
De outros tantos sonhos
Agora que eu vi com os mesmos olhos
As cores de seu esquife
Perdoe-me a franqueza, mas
Não ando querendo fulgências, ar
Tragam-me a carne viva e pulsante
Espero um beijo de morder-se
E regozijar
Um poema de carne osso
E temporais
Como as partes misturadas desse sonho
Já tão distintas do que eu queria
Anteontem
Já tão prenhes

Dos quereres de manhã

(J.Mattos)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Po(e)magem

Sigo meu curso depois de atracar
Meu ubá descansa de sua lida
Levar e trazer, levar e trazer
Dorme bem meu lugar de caminhos
Nos escaninhos do rio
Esta é minha carruagem
Assim, dormindo atracada
Um animal descansando
Feito pelas mãos de quem
Não se cansa jamais
Subir e descer essas águas

(J.Mattos)

Eis um homem (de quem ouvi falar)

Os clérigos contaram suas histórias. Estranhamento e fuga. Deus era mais próximo do que lhe diziam, era o que achava. Estava nos seus erros, estava em seu pessimismo e em sua sincera falta de alegria nas coisas mais simples do dia-a-dia. Aliás sua convicção levou-lhe a todos os cantos do mundo, procurando a Deus. Procurando-se. Seus limites. Suas imensidões. Seu homem como espelho procurava, a humanidade que se enfrenta em abraços cada vez mais escassos. Foi-se pelas águas dos mares e pelas dunas secas de muitos desertos. Não era bem um homem de crenças. Cria na humanidade, todavia. Certa vez teve uma visão e a seguiu durante muitos e muitos anos: alguém abandonado na chuva era mais bonito do que véspera de Natal, mais bonito do que um barco minúsculo enfrentando o Pacífico. Uma pessoa que se molha na natureza insuperável desse mundo é matéria de vida, uma escultura preciosa de se ver. Tudo é silêncio ao redor. Tudo está ao seu dispor. Não há a mediocridade da classe média, a mesquinhez dos abastados, não há classes. Há a pessoa em si. Sozinha em si. Lavada pela única água que abençoa. Cheirava à divindade que perdemos em nossas bocas humanas nas falas do tempo. Criando limites, enxertando pesares quando tudo deveria ser um dia após o outro. Cintilava a pessoa na chuva que ele viu e amou instantaneamente. Não porque fora abandonada aquela pessoa que ele viu sozinha na chuva, mas por que era perfeita. Seguia pela fina estrada da existência mesmo sem ter ninguém por si. Encharcado de tanta vida que lhe foi impossível sentir-se diminuído pela imagem. E assim virou o líquido que encimava a pessoa deixada à própria sorte. Molhou-se de tanto sentir que era necessário estar disponível para todos em todos os lugares. Dia desses, foi o que me disseram, ele foi visto enchendo rios em províncias do sul. Choveu-se sobre mil pessoas que não bebiam águas do céu havia anos. Encontrou-se. J.M.N.

Porque nem tudo é como você pediu

Se ao menos você soubesse de onde eu venho, por quais desertos passei. Se houvesse a mais remota chance de você estar em meus sonhos e acompanhar meus medos mais hediondos sem a certeza dos que acham que a alegria é a única decisão possível. Que ao cabo de contas, é uma decisão, enfim. Se fosse viável a você chorar nos primeiros acordes de “sonata ao luar” e ficar realmente chateada ao fim de “eles não usam black tie”, imaginando o que deu errado com o romantismo. Talvez eu pudesse enviar um sorriso, uma rosa, uma página arrancada do livro que mais gosto – em cujo título tem a palavra “assassinada” – fazer um chá e sentar sob o sol torturante de Rabat numa de nossas viagens imaginárias. Mas você insiste em dizer a todos que há mais fraqueza que introspecção no meu mundo e que já não suporta mais falar comigo ou me chamar de amigo, pois não quer ninguém de cabeça baixa ao seu lado em fotografias, nas festas de fim de ano. Minha genealogia lhe incomoda. O fato de eu ser sempre mais amável do que rude. Minha resposta macia diante de tanta aspereza. Eu não morri. Apesar de já ter quisto imensamente. E se fiquei por aqui foi por conta de outras tantas delicadezas que encontrei no fundo da minha mais desprovida solidão. Saiba: não desejei tantos sensores de realidade fixados em minha pele, nos meus olhos, nos meus dedos que teimam em segurar a pena e escrever independentemente do que eu sinto de mais sofrido e escuro. Se você ao menos pudesse sentir esse vento nos cabelos, e conseguisse na suavidade do tempo que passa enquanto o vento sopra, anular a carga de raiva que nutre por não me entender, saiba... A liberdade que você declara teria a mínima chance de acontecer e ficar. As coisas não seriam assim tão desagradáveis e seu amor eu entenderia como a única coisa possível desde que nos conhecemos, não essa sobra de uma conta que não fecha jamais. Tenho menos esperança na alegria porque dentro dela sou destinado a estar mais longe de mim e se isso me faz estranho, bem, devo dizer que a mim, isso serviu como vida, serviu como aquilo que faz com que os momentos alegres sejam ainda mais especiais. J.M.N. 


Trilha sonora...


quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Ditos para o confessionário #1

Eis que algo novo começa. Alguns o chamam de ano. Eu de tempo. Assim genericamente. “Começa um novo tempo”. E eu estou nele, mesmo que vindo de outrora, de um século, de uma dúzia de mortes e pendências. Meu cristal duradouro agora encandece. Um recomeço. Reinventar-me. Tudo em mim é revirar, despossuir. Meter-me onde não sou chamado, onde as pessoas se consomem, onde as línguas não têm importância, pois todo dito se compreende. O cerne dessa coisa coletiva e ancestral que descobri há muito e participa intensamente de minha experiência de eternidade. Essa coisa que chamo corpo. Tempo inaugurado frente ao tempo contínuo que me antecipa e certamente me superará. E depois voltará à inexistência quando tudo vier a ser a mesma coisa. Estou destinado a esta alma. A mesma que desandei em Granada, a mesma que venceu as Púnicas e a mesmíssima que varreu do meu dicionário a palavra amor, só de prosa. Sou essa mulher escondida entre os dedos do autor. Na frase mais jocosa e entregue que se pode escrever. Sou destinada a feder e implorar por beijos e cetins e sim, sou daquelas que comem mal para manter as curvas e manter segredos entre os jejuns. Sou igualmente o homem perdido em espinhos, cujo abandono nunca foi bem interpretado e a sandice de ser perfeito o levou aos céus; deu-lhe uma humanidade sórdida e carente para redimir. Sou aquela criança no banco de trás quando ocorreu o acidente. Sem cadeirinhas ergonômicas, sem cintos de segurança ou a asa de uma mãe protetora a me segurar. Varei o vidro da frente. Estatelado no meio fio só restou chorar por mim. Eu que morri de abandono, de susto, de fome. Eu que fui conduzido à cova enrolado numa rede com os olhos abertos em uma procissão silenciosa no sertão do Brasil – única criatura com pureza suficiente para olhar nos olhos de Deus. Eu meliante. Déspota. Escritor e poeta com endívia nas palavras e feltros no lugar de dormir. Sou essa entidade impúbere e crente. Ridícula, falando sobre amores e fomes. J.M.N.