Perguntei-lhe para que servia a tira de pano amarrada à
fechadura da porta do quarto de hóspedes. “Descobri que assim posso abrir a
porta mais suavemente e não a acordo, sabes que tua avó precisa descansar”. Era
de manhã cedinho. Ela acordou duas horas antes de mim. Foi até à padaria. “Dois
carecas branquinhos, por favor”. Voltou para casa, tomou banho e ficou zanzando
de um lado para o outro na sala. De vez em quando espiava pelo corredor para
ver se eu já vinha. “Me conta como estão as coisas por lá, as minhas amigas já
sabem, que bom que deu tudo certo”. Ela repetiria isso inúmeras vezes para quem
quer que fosse, eu sabia. “Seu trabalho é bom? Como são as pessoas? Fulana
ainda chora a morte da filha, disse que não se endireita, isso de perder filho
é uma merda”. Meu café teve gosto de infinito. “De repente eu sento e dói aqui,
dói ali; mamãe está bem melhor, mas se esqueceu o que é um sino [risos]”. Não
há maldade em suas palavras, mas o nervoso de ver isso tão próximo de si, o
esquecimento. E nisso, somos iguais. Suas mãos estão mais enrugadas do que a
última vez em que reparei. Meu tempo passa por essas mãos, passa por seus olhos
claros, pelo jeito como se intromete nas filigranas do que faço até hoje e isso
me dá um prazer enorme, o que no fim das contas tem o mesmo peso involuntário
de um incômodo constante por perceber o quanto sou feito dela. “Ainda tenho
muito que fazer, não é fácil, dormiste bem?, vai que teu trabalho é muito
longe. Espera! Me dá um beijo”. Um beijo que comporta tanta aflição e saudade,
medo e ruptura, mas, sobretudo, bons sentimentos. Saio apressado. “Tchau,
tchau, tchau”. Três vezes para ter certeza de que eu precisava sair e eu
respondi ‘até mais’ bem baixinho, com medo de que fosse para sempre. Meu dia
ficou entre política, indústria, um pouco de psicanálise geral e, debruçado numa
aflição que para mim se confundia com o gosto do regresso, não podia esperar
por vê-la novamente. Volto aqui e ela simplesmente me cuida!? “Quando chegares
tem aquele arroz de que tanto gostas”. Ainda nem tinha saído e ela já sentia
falta. Preciso aprender essa antecipação belíssima da saudade, como se fosse
uma pré-saudade, uma coisa que chega antes e anuncia que vai doer, mas logo vai
passar. Minha presença incita isso? É o que de melhor o dia me dá, a brevíssima
certeza de que sou tocado pela coisa própria de quem se encontra consigo mesmo,
a sensação de pertencer. Acabo de entrar. Sei que deixei o quarto arrumado, mas
ele está ainda mais limpo e cheiroso, com toques de quem esteve entrando e
saindo de lá, melhorando em detalhes finíssimos os ajustes já perfeitos do
amor. “Tira a camisa, está molhada, assim gripas, assim podes até ter asma de
novo”. Claro que eu tiro, claro que eu penso que nada mudou e por uma fração de
segundo sinto um incômodo estúpido por estar em suas mãos. “Vamos comer?”.
Espera!, eu digo. Me conta do teu dia. Seguimos ao sofá da sala e, sem resposta
ela aceita o peso do meu cansaço em seu colo. Não houve palavras dali em diante.
Ficamos apenas sendo. Enfurnados um no outro com nossos enigmas e segredos. Eu
o filho. Ela, minha mãe.