quarta-feira, 3 de maio de 2017

Monólogo à guisa de salvação

Nasci na forja dos desatinados e fiz razão sem ter nenhuma. Sou o oposto do que o medo rege, a impossibilidade, paralisia. Sou caminhante, puramente. Sempre em movimento está meu astro. Quando veio a mim o primeiro homem, comi seu casco. Como uma besta a pedir divindades. Sou o que sou. Quase inteiro. De certo, risonho. Desses sorrisos que quando em quando enchem teatros. Sou mais da pena e das escrituras que quando entendo saber de menos, escrevo mais. Meu mundo passadiço é uma história mal contada. Caibo entre teus braços. Toma-me, senão escorro. Afeita-me, senão desgraço. Em tua boca roube o ar que me anima. Era um beijo lancinante e quase escravo. Quando te vi desgraçada e branda, acendi. Pus pólvora e chamas entre teus músculos. Voltei a escrever o que ninguém habita. Dentro do meu corpo de palavras desapegadas cabe bem mais que a eternidade prometida dos amantes. Muito mais que as paralelas de Euclides. Não os encontraremos nos saguões finíssimos. Sou do brejo e da fome. Do seco deserto de muitas luas. Escrevo essa claudica oração sem améns, sem anjos que a repitam. Justamente por saber que a poesia a tudo enfrenta. Inclusive essa ferida recém-aberta. Essa pústula flamejante que me desassossega. Como impedir que sintam pena do que eu choro, agora depois que todos os mortos me atropelam? Como pensar que estive em Gaza e na Macedônia, quando eu estava perdendo as forças dentro dela? Aqui e ali me aborrecem e no vago enterro desse meu corpo, deixei bem mais que uma oferta. A verdade desabalada em página branca. Fui senhor de dois castelos e um bordel. Nos primeiros fiz fortuna e no último causei nos ventres. A ululante canção das eras. Pariu-se o que deixei macerando por anos. Era minha solidão acontecida. Deu-se que na pessoa que lhe deu forma, a própria história acontecida era a minha. Não sei o que digo senhores e senhoras, mas de lambuja botei na página o que me intriga: pode qualquer Deus me salvar das paixões? Pode qualquer humano me impedir de ser sozinho? A resposta deixo a ti, quem me lê e ri. Cretino escrevendo baboseiras. De fato, balbucio algumas letras. A palavra que me falta é de um azul impossível. Eterno seja a página que me suporta, pois que não mais me suportam essas mil vidas. 

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