quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Ditos para o confessionário #1

Eis que algo novo começa. Alguns o chamam de ano. Eu de tempo. Assim genericamente. “Começa um novo tempo”. E eu estou nele, mesmo que vindo de outrora, de um século, de uma dúzia de mortes e pendências. Meu cristal duradouro agora encandece. Um recomeço. Reinventar-me. Tudo em mim é revirar, despossuir. Meter-me onde não sou chamado, onde as pessoas se consomem, onde as línguas não têm importância, pois todo dito se compreende. O cerne dessa coisa coletiva e ancestral que descobri há muito e participa intensamente de minha experiência de eternidade. Essa coisa que chamo corpo. Tempo inaugurado frente ao tempo contínuo que me antecipa e certamente me superará. E depois voltará à inexistência quando tudo vier a ser a mesma coisa. Estou destinado a esta alma. A mesma que desandei em Granada, a mesma que venceu as Púnicas e a mesmíssima que varreu do meu dicionário a palavra amor, só de prosa. Sou essa mulher escondida entre os dedos do autor. Na frase mais jocosa e entregue que se pode escrever. Sou destinada a feder e implorar por beijos e cetins e sim, sou daquelas que comem mal para manter as curvas e manter segredos entre os jejuns. Sou igualmente o homem perdido em espinhos, cujo abandono nunca foi bem interpretado e a sandice de ser perfeito o levou aos céus; deu-lhe uma humanidade sórdida e carente para redimir. Sou aquela criança no banco de trás quando ocorreu o acidente. Sem cadeirinhas ergonômicas, sem cintos de segurança ou a asa de uma mãe protetora a me segurar. Varei o vidro da frente. Estatelado no meio fio só restou chorar por mim. Eu que morri de abandono, de susto, de fome. Eu que fui conduzido à cova enrolado numa rede com os olhos abertos em uma procissão silenciosa no sertão do Brasil – única criatura com pureza suficiente para olhar nos olhos de Deus. Eu meliante. Déspota. Escritor e poeta com endívia nas palavras e feltros no lugar de dormir. Sou essa entidade impúbere e crente. Ridícula, falando sobre amores e fomes. J.M.N.

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