Eis que algo novo começa. Alguns o chamam de ano. Eu de
tempo. Assim genericamente. “Começa um novo tempo”. E eu estou nele, mesmo que
vindo de outrora, de um século, de uma dúzia de mortes e pendências. Meu
cristal duradouro agora encandece. Um recomeço. Reinventar-me. Tudo em mim é revirar,
despossuir. Meter-me onde não sou chamado, onde as pessoas se consomem, onde as
línguas não têm importância, pois todo dito se compreende. O cerne dessa coisa coletiva
e ancestral que descobri há muito e participa intensamente de minha experiência
de eternidade. Essa coisa que chamo corpo. Tempo inaugurado frente ao tempo
contínuo que me antecipa e certamente me superará. E depois voltará à
inexistência quando tudo vier a ser a mesma coisa. Estou destinado a esta alma.
A mesma que desandei em Granada, a mesma que venceu as Púnicas e a mesmíssima
que varreu do meu dicionário a palavra amor, só de prosa. Sou essa mulher
escondida entre os dedos do autor. Na frase mais jocosa e entregue que se pode
escrever. Sou destinada a feder e implorar por beijos e cetins e sim, sou
daquelas que comem mal para manter as curvas e manter segredos entre os jejuns.
Sou igualmente o homem perdido em espinhos, cujo abandono nunca foi bem
interpretado e a sandice de ser perfeito o levou aos céus; deu-lhe uma
humanidade sórdida e carente para redimir. Sou aquela criança no banco de trás
quando ocorreu o acidente. Sem cadeirinhas ergonômicas, sem cintos de segurança
ou a asa de uma mãe protetora a me segurar. Varei o vidro da frente. Estatelado
no meio fio só restou chorar por mim. Eu que morri de abandono, de susto, de
fome. Eu que fui conduzido à cova enrolado numa rede com os olhos abertos em
uma procissão silenciosa no sertão do Brasil – única criatura com pureza
suficiente para olhar nos olhos de Deus. Eu meliante. Déspota. Escritor e poeta
com endívia nas palavras e feltros no lugar de dormir. Sou essa entidade
impúbere e crente. Ridícula, falando sobre amores e fomes. J.M.N.
Nenhum comentário:
Postar um comentário