quinta-feira, 14 de maio de 2015

Lugar

Isso tudo me dói imenso. Primeiro a falta que fazes. Segundo a noite que não acabou mais. Ando escuro. Vestido em pijamas e indiferença. Outro dia vi um velho juntando cacos na rua. Podiam ser eu – digo, os cacos. Nunca mais Paulo Cesar Pinheiro soou igual. O costume é a pedra no caminho. Esses dias têm cara de não vividos. A casa ainda banca a valente. Ninguém vendeu. Ninguém quis morar. Desabitados nós dois. Paredes e órgãos abarrotados de ausência. No jornal só notícias violentas. Não costumávamos assistir aos canais grotescos. Como não fazíamos festa para quem não tinha ímpeto, um quê de loucura que fosse. Não tínhamos a obrigação de dizer, simplesmente. Na família vai tudo bem. Meu pai emagreceu. Vi teu pai dia desses. Fino e austero como sempre. Comprando pães. E me perguntei: como não toquei na mão desse homem? Como o evitei? Prelúdio do que fomos no fim? Debaixo dos livros mudados tantas vezes de lugar, a mesma poeira que combatias vivamente. O indicador de que estou ficando pior é a quantidade. Os romances, os livros de poesia, as biografias extensas de tantos personagens ilustres e destrutivos. Um dia escrevo a tua. Passearei na desmesura de sentir mais uma vez. A onda titânica do que nos acontecia em presença um do outro. O testemunho de fé sobre em coisas corpóreas. A ira. A saliva. A ferida. A torção na espinha. Tatuado no meu corpo o solitário que sou. Nas minhas páginas fingidas, a manhã em que não voltaste. O relógio despertando, maldita cinco da matina. Não sei mais fazer versos. Não sei mais entender álgebra e astronomia. Tudo me enfada. Tudo me desgasta. Não fossem meus exames de sangue, radiografias, punções lombares, não me sabia vivo. Não me sabia. Nem o porquê dessas palavras. Assim, dessabido. Corro o risco de viver mais para mim. E mesmo lembrando, não tenho saudades. Penso em nós aprendendo. Ídolos agora só os enterrados e o velho catador de cacos lá rua. Lúcio Cardoso certamente me influencia. E, esquecidas, quaisquer possibilidades de comparação também eu assassino casas. Não preciso de alpendres ou canteiros. Meus olhos estão em outro lugar. Onde não estás. E por isso mesmo, por esta única razão, posso falar em ti como um detalhe, usar tua pessoa inominável para escrever algumas linhas. Como fosse um lugar onde se formam os destinos de alguns ditos. E só. Esvaziar-me de um dia duro e mecânico. Percebo, enfim, que sou inteiramente meu. Que sou eu mesmo o meu lugar. J.M.N.

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