domingo, 19 de julho de 2015

O homem que se achava Napoleão – Laure Murat


“Se os doentes às vezes falaram, não se registrou suficientemente o que eles disseram”. Em 1845, o psiquiatra francês Moreau de Tours, discípulo de Esquirol, fazia a confissão de um silêncio imposto aos doentes mentais dos hospícios franceses. Imposição que, ao longo da história da loucura, se renova e espalha às mais distantes paisagens a se interpor insistentemente entre o médico e o paciente. Laure Murat, se apropriando do ferramental de Foucault, adentrou e se deixou invadir pelos arquivos de quatro hospitais franceses: Bicêtre, Salpêtriére, Sainte-Anne e Charenton. Locais onde loucos e inimigos do estado eram trancafiados e silenciados. Locais onde os murmúrios e os gemidos dos doentes esperaram por uma decodificação.

Lá, em meio à frieza e ao laconismo do registro médico, Murat revela que o talento de escritora parece concorrer em pé de igualdade com a competência de historiadora. Nas páginas frágeis e abundantes descobre pérolas que só a loucura seria capaz de nos presentear. “Ela viu o sol cair aos seus pés”, registra o alienista. “Pergunto-lhe se está doente, ele me responde: ‘De amor’”. Mas o livro fala de como as vozes que vem de fora dos muros dos hospícios influenciam os fantasmas que vagam lá dentro. A autora faz um recorte do período compreendido entre 1789 e 1871, ou melhor, entre a revolução francesa e a comuna de Paris. A pergunta que guia a pesquisa é: como se delira a história?
Sim, é possível contar a história da humanidade pelos delírios dos loucos, assim como é possível flagrar a loucura mudando os rumos da história. Esse livro encontra não só a história na loucura, mas também a loucura na história.

A caricatura do homem que se achava napoleão como a mais potente imagem do louco com manias de grandeza – ou de monomania orgulhosa, como definiam os alienistas – começou a ser forjada em 1840 quando chegaram a França as cinzas do imperador que, não tendo a realeza no sangue, tomou o trono para si, tornando-se a encarnação do poder absoluto e acessível a qualquer sonhador mais ambicioso. Mas o que diferencia Napoleão desses seres que pensam ser ele? Apenas a originalidade? Talvez. É certo que o próprio Napoleão tinha visões de uma estrela que guiava suas conquistas e sua ambição poderia ser considerada desmedida pela maior parte os franceses. Enfim, o psiquiatra é também um sujeito atravessado pelo seu tempo.

E por causa e consequência desse atravessamento, a psiquiatria, desde os seus princípios até hoje, serviu como instrumento de controle do poder vigente. A doença amiúde faz do médico um agente da ordem pública. Drapetomania foi o nome dado pelo Dr. Samuel A. Cartwright à doença cujo único sintoma era o desejo incontrolável de ganhar a liberdade, muito comum entre os escravos negros do Sul dos Estados Unidos. O que dizer das mães de desaparecidos pela ditadura argentina que foram chamadas de “Loucas” da praça de Maio? Lembro que a Associação Americana de Psiquiatria incluiu, em 1952, a homossexualidade no rol dos transtornos mentais do seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) retirando-a apenas em 1973 após inúmeras pesquisas que provaram o óbvio, que a classificação refletia apenas normas estabelecidas socialmente. Temos ainda o caso da maconha, incluída na lista de drogas mais perigosas do mundo, sem nunca ter matado ninguém. Os exemplos surgem todos os dias e vindo de todos os lugares.

O fato é que história e loucura se afetam em entrelaçamentos que quase nunca se mostram favoráveis aos loucos. E não é preciso ir muito longe para confirmar a tese de O Homem que Achava Napoleão. Nos locais de reunião de moradores de rua da cidade onde moro, Parauapebas, frequentemente sou abordado por um senhor que tece uma intrincada biografia pessoal que prova que ele recebeu a serra dos Carajás como herança e que a Vale, através do seu poder financeiro e político, lhe tomou para explorar o minério de ferro escondido em seu subsolo. Ao passo que os loucos remanescentes em Serra Pelada deliram pepitas de ouro de tamanhos colossais.  Os delírios paranoicos dos moradores da zona rural do sudeste do estado do Pará estão quase todos relacionados à luta de terras. Todos eles são submetidos às novas formas de silenciamento da loucura.


Se no século XVIII o tratamento moral de Pinel fez os cadeados saltarem para dentro do louco em forma de disciplina e normatização, na contemporaneidade esse controle rígido e implacável, ainda confundido com tratamento, fez dos remédios seus veículos preferidos, e muitas vezes os únicos. Quatro séculos nos separam de Pinel e Esquirol. Nesse tempo apenas as formas de não ouvir mudaram. As histórias singulares ainda encontram trincheiras na psicanálise e em outras formas de escuta do desejo. Lamentavelmente, estas são forças de resistência a um movimento de pressa e uniformização. O livro de Murat torna-se assim um aviso dados por vozes distantes no tempo e no espaço, porém tão atuais. WDC

Um comentário:

Anônimo disse...

Alguns textos me remetem à situaçoes vividas aqui no sul do Para. Seu texto foi um deles. Presenciamos ainda muitas formas de encarceramento da loucura, porque a sua verdade será sempre uma sacudida na forma de viver em todas as épocas de nossa história. E cada época produz sua proprias formas de calar a loucura. Lindo texto!