segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Cheiros do tempo I

Nas passagens de ano Virgínia costumava dançar, desligada de si e dos presentes. Girava pela sala cheia, anterior à verdade das coisas. Era quase uma entidade. Sua dança cheirava. Jasmins da noite, rosas e garrafadas. Seus passos dados como pequenos esquemas de conexão com a Terra. Fincavam no chão suas certezas e dores. Ia-se deixando também. Firme, rija em seu transe, ela acertava as contas com o destino. E sonhava. Ela benzia de longe os netos e em especial o primeiro deles, que tinha o nome de seu marido. Ela o benzia com silêncio e dança e essências sutis. Cheiros que se fixaram no centro dele, em suas linhas, nas suas dores, certamente. A lembrança dela, em seus dias de solidão, cheira às festas de fim de ano dentro dele. Então quando ele sente sua falta, volta pelo cheiro do tempo à benção que ela lhe dava em silêncio, em meio à multidão de parentes, vizinhos e agregados. Quem cantava ao fundo era Clara Nunes. É feito uma reza, um ritual [...] parece, a maravilha de aquarela que surgiu. A procissão da memória se arrasta e a proteção acontece só de lembrar. Embebida numa santidade humana e sensorial que cheira como um relicário de sentidos. A presença de Virgínia dançando lhe dá calma. E um cheiro de finais felizes, em pratos de fim de ano, em rezas pela dor do mundo e de todas as pessoas amadas, esperando viver tudo de novo, no ano seguinte. J.M.N.

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