segunda-feira, 17 de maio de 2010

Dos dias que não sobraram

O zinabre cobrindo os segredos que esqueci de te contar, tenho-os ainda. São meus e teus ademais. Assim como a certeza de que sabias que não era esquecimento. O fato que é fostes embora cedo demais. Aquele dia em Brasília, fostes a única a dar escuta para os meus exageros, como sempre. Pela primeira vez vi um palavrão saindo da tua boca tão acostumada a falar de Clarice e de essências. Gentista, era o que eras. As gentes te encantavam. As gentes todas te olhavam com desvelo, mensurei isso pelo tamanho da tristeza que deixaste pelas aléias choradas pelos teus. Ainda hoje me deparo com um pedaço de ti quando olho nesse espelho cansado do meu quarto. O modo de virar o relógio para a parte interna do braço pra que ninguém notasse quando vias as horas, e que eu achava de uma elegância sem precedentes. Os teus livros e a linguagem de fazer todas as horas únicas e inesquecíveis. O sempre partilhado desejo pelo impossível. O jeito de sorrir depois de abrir mais um veio em nossa couraça. Hoje sei, senhora, que o formão que usei era do meu pai, e quem foi ao cartório pra corrigir meu nome foi meu irmão. E só tu, senhora, conhece como essas pequenas odisséias enoveladas constituem a matéria primeira de meu sangue. Dá-me os óculos, foi isso que, como Pessoa, falastes nas tuas últimas horas? Ou falastes das riquezas que a dor nos deixou? Concluo que as tuas heranças foram mais numerosas que o vazio esmorecido que se arrastou depois da tua despedida. E que essa palavra comum de dois gêneros que te definia sem te enjaular ainda me guia como a mão materna que me salvou de mim, da minha falta e do meu amor em demasia.

WDC

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