sábado, 21 de novembro de 2009

Duarte e as sobras do jantar

Este texto foi originalmente escrito para compor um livro que está no prelo. Por sugestão de meu primeiro "editor", retirei-o de lá e o publiquei no blog Recanto das Letras, UOL. Penso que aqui, ele realmente encontra sua morada definitiva.

Ele chega em casa com a fome de dois dias e senta à mesa esperando o jantar. O filho menor critica a professora como sempre – o dever de casa é muito difícil. Duarte pensou alguma coisa sobre as despesas mensais, o chefe mau caráter e seu trabalho desgraçadamente pesado, mas preferiu não dizer nada. O filho haveria de saber daquelas coisas um dia. A TV estava quebrada havia um mês, os meninos acabaram em segundos e correram para a casa do vizinho. Talvez porque não houvesse muito que comer, talvez porque a mãe já não era a mesma cozinheira dos tempos de fartura ou, quem sabe, queriam apenas ver o DVD pirata com o filme tão esperado. Duarte sentado, sem tocar na comida. A mulher finalmente lhe dirige um olhar e pergunta sobre o dinheiro para o gás da semana. Ele dá de ombros como se aquilo fosse absolutamente desnecessário. Ela se levanta e diz coisas na linguagem do desgaste dos anos, da raiva desesperada que não haveria de saltar da boca, pois não havia o que fazer de qualquer maneira. Uma dor antiga se instala no estomago vazio. Duarte pensa nos anos em que trabalhava numa grande empresa e ganhava o suficiente para finais de semana no litoral e buquês de flores semana sim, semana não. Um de seus olhos molhou. Suas costas deram o sinal da derrota do cotidiano. Na mesma hora de todos os dias. Levantou e disse à esposa que lavaria a louça. Nunca havia se oferecido para a tarefa. A esposa estranhou, mas passou o prato ensaboado que tinha nas mãos e jogou em seu ombro direito, o pano de enxugar. Ele trabalhou em silêncio por muito tempo. Viu de relance a mulher sair de casa – rumo ignorado – com um perfume nunca antes sentido. Guardou cada artefato de mesa em seu devido lugar. Sentou-se novamente em frente ao seu prato de comida. A carne fria, o arroz duro e todo o silêncio da casa para lhe atormentar. Houve um tempo em que fora feliz. Não lembrava em que ano, comprara um automóvel zero quilômetro. Sua música predileta nunca tocava na rádio do bairro. Tivera um terno, sapatos brancos muito finos e um relógio à prova d’água. Tinha sido bonitão, com lábia para todo e qualquer tipo de ocasião. Um cara com boas expectativas. Perdeu o hábito de se olhar no espelho e a curiosidade de se estudar e se reconhecer abordou-lhe naquele instante. Largou o jantar mais uma vez e foi até o banheiro. Olhou bem nos olhos daquele ser imaginário do espelho e riu até chorar da figura bruta que surgiu diante de si. Cabelos grisalhos. Olhos atirados num tempo qualquer, fora das órbitas, ademais. Duarte chorou. Voltou à mesa e comeu seu alimento. Recebeu os filhos sem calor nos braços. Beijou-os de boca seca e com muita culpa pela deselegância de sua figura paterna. Sentou na poltrona gasta e esperou a esposa. Dormiu. De manhã acordou e sentiu que o peso da noite anterior tinha dissipado. Por alguma razão, sentia-se feliz. Os meninos já tinham esquentado o seu café da manhã. Ele os beijou diferente. Com lábios cheios de si e de amor matutino. Duarte estava mais moço. Com os cabelos arrumados apareceu na frente dos meninos e disse que os levaria para a escola. Eles avisaram que era sábado e mais, sua mãe não havia dormido em casa e que, aliás, aquela era a terceira vez na semana. Duarte os olhou por um breve minuto e disse – que se dane, vamos ao parque! E com aquilo, partiu para a alegria e uma manhã sem nuvens, um filho em cada mão. Uma estranha sensação de liberdade. Disse bom dia para os vizinhos que havia muito tempo, não sabiam o som de sua voz. Desceu as alamedas com a pressa de um adolescente. Os meninos riam também. Naquela manhã ele traçou planos, como nunca mais havia traçado e deixou a monotonia dos pensamentos obscuros debaixo da renovada sensação de vida que se instalava. Faria panquecas para o jantar e nunca mais deixaria os filhos correrem de si. Parecia, enfim que tudo correria bem. Parecia. J.M.N

Um comentário:

Anônimo disse...

Esse texto é muito bom mesmo. Uma crônica e tanto. Muito do ctidiano e das sensações represadas, assim como aquelas situações em que tendemos a dizer que tudo está bem quando, na veradde estamos mortos por dentro.

Muito bom.

Flávio