quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A vida depois do instante

“[…] a fraternidade nasce somente
a partir de baixo, do identificar-se, fazer-se um […].
E seria completamente ilusório e historicamente
ineficaz acreditar que se possa estabelecer
uma fraternidade
prescindindo dessa medida,
sempre de novo confrontada com o aspecto concreto
do semblante de quem sofre.”

Piero Coda, 2007.

Depois do que disseste sobre as freqüências, sobre os mesmos sentimentos em corpos diferentes espalhados por ai, no espaço inventado dos bytes e processamentos, ficou difícil manter aquelas velhas idéias. Algumas vezes o que parece é de fato, tens razão. Nascemos da mesma matéria, da mesma investidura animal na sobrevivência, na procriação e manutenção da espécie. Nascemos na mesma fornalha dos enlevos e dopaminas, em cujas margens ficaram os amores, os sortilégios do tempo, a vontade de vivermos enamorados, desatentos aos pesares do corpo, às vias náufragas para onde partiram as naus benzidas pelo bispo. Nosso gral é caneco de escolhas (copo de ira, de vinhos e absurdos), ajuntamento de mortes sucessivas. Em nossa taça cabe aquilo que escapou aos santos, ainda bem. Não fizemos muitos destes caminhos juntos, mas hoje, ao sentar contigo e escrever mais um dia – e a penas mais um como me disseste – senti-me, de fato, existindo. Não por tuas palavras, não por ver que te recuperas, mas por sentir que os apelos de nossas melancolias mais antigas, sujeitam-se ainda à beleza, aos fatores anti-sépticos das entregas imediatas, dos amores de extravio e das brutalidades. Por que a coisa em si de estar vivo é mutuamente suja e conspícua, bela e terrível e recusar esse emaranhado de afetos, parcimônia e feridas, é como negar-se a si mesmo, é como engajar-se num riso vago, nos abraços sem causa. E isso não cabe na notável atividade de nossos corações desavisados e bravios. J.M.N

2 comentários:

Anônimo disse...

Prezado amigo,

De certo somos esses corpos lançados à deriva no cosmos. E por sermos assim, incompletos, como linhas tracejadas, estamos vocacionados a eterna arte do encontro.
Viver não é tarefa fácil, já foi mais maneiro esse trabalho de beijar testa de onça.
Nós com nosso casacos testados por tantas guerras, com a lapela repleta de estrelas e derrotas. Temos mais razões para darmos mais respeito a essas cicatrizes, cujos calóides ainda embalam lembranças. Trágico seria ter vivido para lembrar apenas domingos de missa, antes o altar de Bacon seus desejos e delícias. É desse material que são feitas as paixões: lágrima, magma, agonia e êxtase. Deixem-nos com nossos elmos e cetros pesados de melancolia. O que aqui deixamos escrito transmutasse em reminiscências entre vampiros cujas almas antigas e cataclísmicas se reconhecem na solidão da noite.
Qualquer outra semelhança, é mera coincidência.

Abraço forte

Marcelo

José Mattos disse...

Caro Marcelo,

Onde andam dois perdidos, existe uma multidão de encontrados sem as suas fantasias. Algumas vezes são os abismos e as torrentes que dão frutos. Outras vezes a calmaria. De qualquer modo, tudo é vida e disso, acho que sabemos um pouco.

Grande abraço meu irmão,

J.Mattos