sábado, 6 de junho de 2009

A primeira ilusão

"Abrindo o olho para o que se sonha,
tem-se cautela ao que se descortina,
pode-se estar na diretriz divina,
pode-se entrar na direção medonha."

Catecismo - Paulo Cesar Pinheiro

João acordou ensopado. Teve poucas horas de sono. Um sono amargo, pouco descansado. Acordou no meio de um pesadelo e qual fosse real o que sonhava, continuou agindo. Sonho real numa manhã inventada bem antes do que deveria. Olhou para o lado e não havia nada. Nem o quente do corpo dela, nem a mansidão endividada de suas manhãs antes do trabalho. Lembrou que era melhor em dar amor do que solicitá-lo, pois assim teria que admitir que não tinha. Esse pensamento o confundiu um pouco. Estendeu o braço esquerdo à imagem que se formava meio translúcida e cultivou inoportunas violetas em torno dela. Levou uns minutos para se descobrir acordado. João, decerto, não intentou roubar a razão dos sonhos. Presumiu revoltado que a instalação daquela bruma era tudo o que restara da pequena ficção a que se dera direito desde que tudo começou. João enxugou o rosto, mas viu que continuava úmido. E entendeu o motivo, depois de sentir os olhos ardidos. Acordava como nas vezes anteriores em meio a um choro dormente. Vazio de contrários e vida contundente. Sentiu que a pressa passara, que a teimosia de não se conformar nunca, esta sim, adormecera e ressonava esquecida em qualquer quadrante de sua memória. Quando haverá outro dia esperança, quando? Jamais se conformaria com o fato. E sua glória administrada cedeu, uma culpa secular recobrou seus laços, atada permanentemente aos seus intentos. Ter sem culpa, não era possível. Com a triste combinação de verdade e impedimento que se lhe guardavam essas manhãs conturbadas. João chorava a falta. Simplesmente aquilo que já não tinha e que, demasiado tarde, descobriu que jamais poderia ter, pois tais apostas pedem riscos muito elevados. Definiu com a respiração ainda ofegante que aquele dia seria mais um dia. E somente mais um. Onde tudo começaria com o bagunçado envolvimento de seus sentidos com as horas inagurais da manhã e acabaria em sua escrivaninha, rabiscado nas folhas de papel branco, começando, quem sabe, as silentes profecias dos amores acabados de repente, as quais diariamente se convertiam em diários, cartas, e livros intermináveis. João, na verdade, queria apenas um pouco mais de sono, mas não conseguiu. J.M.N

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