segunda-feira, 1 de junho de 2009

Uma dessas coisas primeiro

"I could have been your pillar,
could have been your door
I could have stayed beside you,
could have stayed for more.
Could have been your statue,
could have been your friend,
A whole long lifetime
could have been the end."

(One of this things first - Nick Drake)

Foi justamente isso... Remissão e sacanagem.
Se eu dissesse que tinha sido amor estaria mentindo.
Caras e bocas. Invernos aconchegantes nas estâncias térmicas do país. Muito dinheiro gasto com sonhos e cachecóis.
Não compramos um apartamento. Nem lava-louças.
Deixamos às traças os livros raros que herdamos dos respectivos pais. Nódoas nos panos de mesa da avó dela. Mofo esverdeado nos carpetes. Tristeza. Espelhos partidos. Manteiga estragada e comida ruim.
O sexo foi o de menos. Havíamos piorado muito já no fim do primeiro semestre. Dai pra frente, amantes. De cá e de lá, pelo que sempre desconfiei.
Estávamos certos. Estávamos errados. Nos conhecíamos. Nos odiávamos por causa deste conhecimento e juramos ser amigos para sempre.
Nunca se falou em amor.
Nunca se falou em casamento.
Nunca se falou em separação e, no entanto, quase nos matamos umas três ou quatro vezes.
Olho aquele nada que foi nosso primeiro ano.
O segundo, nem isso foi.
Sua bunda já não era mais a mesma. A minha nunca tinha existido. Defeito de fábrica, preguiça dos meus pais, sei lá. Uma armadilha anatômica para os meus pés, que viviam desfazendo a barra das calças.
Nossas caras já não escondiam a vergonha e a antipatia daquela desgraça compartilhada.
Jantares interrompidos. Meu telefone. O telefone dela. Desculpas esfarrapadas. Bilhetes anônimos escritos por nós mesmos. Mentiras afluentes que nem se distinguiam das coisas doces que inventávamos de vez em quando para acreditarmos em nossa humanidade para variar.
Mas nunca, nunca a palavra adeus.
Certo dia, acordei às duas da manhã e chamei-lhe pelo nome. Obviamente estava sonhando.
Ela acordou assustada. Olhou-me e não disse nada.
Foi a primeira vez que vi lágrimas nos seus olhos.
Nenhuma palavra e o abraço mais seguro que já tive em vida.
- Desculpe! eu disse
- Não diga nada!
E dormimos assim, eu nos braços dela e minhas culpas debaixo da cama. Apenas por aquela noite carreguei o peso das coisas sozinho. Ela era sóbria. Eu, um covarde. Precisava como nunca daquele abraço.
Seus olhos brilhando. Minhas mãos tremendo. Eu encurtando. Ela me chamando de amor. Corações quase implodidos. Devaneios à madrugada sórdida. Desconcerto. Ternura. Rancores entulhados...
O abraço noturno seguiu até de manhã. O amor do avesso se acalmou.
Soltamos os corpos.
O vazio tinha outra forma.
- Quer café? Alguém disse.
Sem resposta tomamos um dejejum forçados.
Temperado pelas palavras malditas que se escondiam nas bocas medrosas.
- Banho?
Ela concordou.
Depois da água veio um calor insuportável e o cheiro espesso do cotidiano.
- Não vai pro trabalho! Ela pediu.
- Tenho uma reunião importante.
- Claro, claro. Desculpe! Ela disse com melancolia.
Pela segunda vez na vida eu a vi chorar... Desta vez sem lágrimas.
Voltei do meio do caminho.
- Cancela a reunião, pois tenho que amar alguém, foi o que disse para a secretária.
Dona Lúcia, minha companheira de tantos anos sorriu e disse do outro lado da linha:
- Já não era sem tempo.
Dona Lúcia me conhecia melhor que ninguém.
Cheguei em casa atônito. Com ares de amante latino. Muito vulgar, cheguei babando...
- Tira a roupa!
Ela nem sequer me escutou e pulou da cama me derrubando.
- Você acha que é tarde demais? ela perguntou.
- Não sei, respondi.
- Então me come.
Naquele momento impreciso dissemos tudo o que estava por vir havia tempos...
- Me destrói?
- Me culmina?
- Me atira uma pedra?
- Afoga minha ira?
- Me transpira?
- Me reinventa?
- Constrói um edifício pra mim?
- Te transforma numa estrela?
- Me chama de puta?
- Puta!

Eu cedi. Sempre cedia.
E acordei com a beleza daquela estranha que odiara por tanto tempo, transformada na obra divina dos meus ancestrais. A mulher prometida.
Olhei-me no espelho equanto ela dormia. Rugas salientavam minhas desgraças. A barba mal feita denunciou meu abandono e o corpo que ali estava, parecia ser de um outro alguém.
Apesar disso, ri e emprestei as lágrimas dela.
Disse para a imagem destroçada que via no espelho:

- Quem disse que se pode deixá-la?

Não tento nunca mais.J.M.N

2 comentários:

Anônimo disse...

Contundente!

Quem já viveu assim, esses limites só pode realmente te dizer obrigado, pois transformar esses sentimentos e desejos em palavras não é nada fácil e muitas vezes é até indesejável.

Beijo grande.

M.

José Mattos disse...

Grato pelas palavras.
Esteja sempre por perto.

Um beijo grande,

J.Mattos