sexta-feira, 6 de junho de 2008

Do que nunca se diz ou quer

Os olhos dela desenham minha existência conforme aumentam ou diminuem as possibilidades da luz entrar. Dia alto se me ama. Escuro negro se acometida de isolamento. O chá esfria inexoravelmente sobre a mesa. Descobri que estamos mais próximos de ser conforme menos pensamos nas histórias de antes e, de alguma forma mágica, podemos olhar o futuro sem as molduras do que passou. Inventando horizontes a partir de muito pouco. A alma límpida e estonteante como recém-nascida. Meu pedido atinge o sagrado. Esmero-me em ser bom e adquirir a santidade terrena de que me falavam meus ancestrais. Esperando morrer puro, morro incompleto e só. Outra dor se instala no meu peito. Talvez o cansaço dos dias, talvez a certeza de que ainda procuro. Lembro mais do beijo do que de suas palavras para o fim. Ela sempre chegava a isso quando estava feliz demais. Nomeou minhas expectativas em três tópicos bem explicados e nunca vacilou em dizer que eu era obscuro e lento. Nunca a entendi. Uma noite dormiu por sobre meu cadáver. Ela sonhando sobre meu corpo desnorteado e eu sem saber se respirava ou me entregava àquele estranhamento. Decidi romper o cerco. Empurrei-a de mim. Ela dormindo caiu da cama. No carpete, reclamou do frio. Sua pele branca como um lençol. Não a cobri, não lhe dei proteção. Morri um pouco naquele dia. Dos anos todos o que me lembrava era de sua astúcia. A solidez de seus conhecimentos. Um pouco de sua imprudência em relação ao trânsito. Lembrava dela a catar nas fotos de sua família as gerações mais próximas de si. Seus parentes mais bonitos. Quem sabe o pai pretendido. Nunca foi ao mercado ou tratou da carne-alimento. Naquele dia em que perdi seu concerto, aborreceu-se mais com a cadeira vazia na platéia do que propriamente com minha ausência. Nunca me perdoou por ter deixado um lugar vazio. Eu, por minha vez, nunca a perdoei por ter me esquecido aos poucos. Nas viagens para fora do país. Nos longos banhos solitários em meio aos sussurros desesperados, entregue a si mesma. Eu que nunca pensei em existir primeiro. Quando mais entrava em seu corpo, mas estava fora de mim. Inalcançável dentro do espectro dormente das lembranças que eu tinha dela. Especulei por muito tempo que, afinal, toda a conjectura que fazemos para uma vida a dois, depende de nossas vontades não reveladas, pois qualquer plano de existência falha diante dos resquícios de nossa porção animal. A natureza sempre cobra pedágio, sempre se impõe. Quando não consegui mais me desprender de minha alma, quando senti que meu corpo não suportava mais as tensões da solidão compartida, inaugurei uma nova forma de viver e a partir de então, certo ou errado, estive todos os dias em seus pensamentos. Tudo começou quando no abandono lhe perguntei se ela se importava que eu dormisse sozinho. Sua resposta foi fraca e percebi que havia penetrado num mundo que era só dela. Houve algo doloroso em ter que admitir minha independência. Seu pior temor se concretizou naquele dia. Nos dias seguintes não reclamei de seus silêncios. Não pedi que me torrasse o pão. Não assumi meus crimes cotidianos: copos largados na mesa de centro, papéis em seu escaninho, quadros desalinhados. Certo dia, em meio a um beijo apaixonado, disse-lhe que parasse de fumar. Ela me beijou mais forte e em meio àquele acre veludo da nicotina descobri que havia chegado mais próximo. Talvez entrado finalmente. Continuei apertando sua boca descortinando, extasiado, suas improbidades. Passei pela infância solitária, pelos anos de rebeldia, talentos desperdiçados, usura, maldades. Passei por suas traições e me instalei, enfim, naquele espaço que seria só meu – seu desamparo. Continuei a acrescentar verdades às nossas noites, cada vez mais insanas. Troquei os discos desanimados por guitarras e distorções. Continuo passando o tempo a esperar que ela volte, mas digo apenas: traz o pão. Aprendi a mentir. A ser pela metade. Admirar suas esquisitices. Não pretendo ser perfeito ou que sejamos os últimos amantes desse planeta. Redobrado em cuidados próprios. Devolvendo sua distância para me aproximar dos seus sentidos. Espero apenas estar ocupado em ocupá-la de mim, criando impossibilidades para que ela supere e se alimente. Sigo me sentido amado e, de outra forma, sigo adiante na luz de seus olhos. J.M.N

2 comentários:

Anônimo disse...

Neto, que maravilha! Mas isso não é um blog. É uma enciclopédia litero-musical. Tenho que tirar um dia inteiro para ler seus textos e conferir o acervo musical. Não sabia que você era autor. E dos bons!

Mas hoje não vou comentar os textos. Apenas vou colocar um poema de Fernado Pessoa para você. É um poema de que gosto muito e que com certeza você já conhece. Mas quero que o leia neste momento. Você sabe por quê.

Para ser grande, sê inteiro;
nada teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa,
põe o quanto és no mínimo que fazes;
Assim em cada lago a lua inteira brilha,
porquanto alta vive.

Fernando Pessoa


Vilma

José Mattos disse...

Vilma,
Seu comentário é muito mais que letras arrumadas... é encanto... O meu pra ser exato.
Das muitas coisas que tive de bom em 2007, estar com você tendo o privilégio de te acompanhar como co-facilitador, sem dúvidas, está dentre as principais.
Sinto muito orgulho disso!
Tem muito mais de onde esses escritos sairam, espero que venhas sempre por aui.

Um abraço e um beijo... Até julho.