quinta-feira, 11 de março de 2010

Todos personagens

Por causa de Luigi Pirandello

Eis que surge aquele homem. Deteriorado e esperando a chuva para lavar suas feridas. Está diante de uma porta. A espera do acolhimento de quem está dentro da casa e parece fazer o jantar. Através da janela é capaz de sentir o cheiro inconfundível do pertencimento, e chora. E se lembra que não tem nada a lembrar. Ele foi vencido pelo frio e pela fome e quando começou a espiar ninguém seguiu em sua direção. Vejo o velho que senta à calcada e conta moedas. Tem apenas uma das mãos e seu quinhão diminui a cada jorro dos dinheiros. Ele não se incomoda, percebe que sua condição ainda trará mais. Não é bem uma fortuna, apenas a piedade dos outros – ele pensa que a merece. Vejo ao longe a pequena perdida, uma ilha de solidão sua beleza. Ela diz coisas que não caberiam se ela estivesse em uma casa bem aquecida e vigiada. Seus cabelos espalhados na pele do vento acusam que ela não encontra direção. Aperta-se ao se oferecer, como recusando a si mesma o papel que desempenha – e quando lhe dizem não, ela fica feliz por mais dois ou três minutos. Escorregando rumo à areia, sinto o cheiro da infância dele. Um menino, de macacão amarelo e cabelos cacheados. Ninguém jamais pensaria que tinha o esporte de matar formigas e que quando crescesse, passaria a matar-se a si próprio em venenos de escrita e na encruzilhada corpórea do desejo, o delta de suas fêmeas mais queridas. Mas naquela tarde, há muitos anos, no quadro por onde olho e o enxergo pela primeira vez, ele está feliz. Cavalga centauros e atira flechas em medusas. Prova areia e cataloga, um a um, os gestos de seu pai, quem sabe para imitá-lo, quem sabe para saber como matá-lo mais facilmente. E vem uma gota nesse olho que vê passados, pertences e abandonos com a mesma eficácia com que vê entrelinhas nas bobagens que nascem à pena, numa tarde solitária. E essa gota o acorda. Estou de volta. Meu corpo atua. Meus sentidos ainda histéricos, perdidos no sangue que corre e irriga aquelas vidas todas que revelei no devaneio. E diante do espelho, feliz e assustado, vejo quem sou. Eu poderia sorrir, mas preferi ficar contente de outro jeito. J.M.N.

Um comentário:

Drica disse...

Lindo texto!
Orgulho enorme por conhecê-lo em primeira mão.