quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Um nome para a partida

A identidade final seria revelada. Não sem antes uns anos de dor e agiotagem de sentimentos. Andava pressionando a memória para que ela me cuspisse o nome dela. Nada. Uma tarde chuvosa, anos antes. Um país longínquo do qual nem mesmo fotografias restaram. Seria assim? Um fim em meio a tanta predição e vontade. Aquela ascese arrebatadora a uma memória não confirmada, de um tempo a muito morto, num lugar que não existia mais. De lá, daqueles confins assustadores da doença, ela sobreveio. Ríspida, vulgar. Como sempre. E afinal a enfermeira entendeu que era apenas um delírio e me fez aquele carinho insípido de todas as enfermeiras de casas para velhos. Ajustou meu balão de oxigênio e saiu de fininho fingindo que restaurara minha calma com aqueles seus gestos pensados e insuficientes. A identidade viria novamente. Fazia força para controlar meus músculos. A fragilidade de meu corpo se revelara de maneira decadente e constrangida, com minhas necessidades fisiológicas não podendo mais ser coordenadas por minha vontade. Às vezes eu cheirava mal como a minha memória. Ainda assim, sabia que viria. Que ela, em sua portentosa figura acenaria para mim um dia daqueles. Assim foi. Com seu grito eu levantei da cadeira. Uma tarde rosada e cheirando aos cinamomos da primavera recente. Não corri aos seus braços. Fui calmamente andando e orando. Tudo o que me lembrava de santo ou bíblico estava ali naquela fala remota que eu emitia para ninguém. Por sobre mim a enfermeira comedida e bem treinada fazendo força em meu peito. Talvez eu já não estivesse naquela casaca houvesse um tempo. Não me furtei em gesticular meu alívio por sair dali de mãos dadas com minha companheira de décadas. Sua identidade foi revelada no momento final e quando soube o que eu passara a ser, ela voltou ao longe de onde veio. Deixou-me seu nome, sua voz azulada e meu descanso eterno como um prêmio. Seu presente final. Alguns disseram que me acomodei no catre com um grande sorriso no rosto. J.M.N.

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