sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Verônica voltou a andar

Mais uma sobra do livro que está no prelo.
Originalmente escrito em fevereiro de 1997,
por ocasião de um acontecimento igualmente trágico.

No dia em que Verônica voltou a andar, levou um tiro na testa. No convite para o enterro editado pelo jornal local, estava escrito: “... Jovem destaque de nossa sociedade, ...pessoa inteligente e com futuro promissor, ...deixará saudades naqueles que a conheciam e se sentiam abrilhantados por sua presença...”.
Uma grande farsa. Verônica cheirava todas. Roubava os amigos para manter o vício.
Levava pra cama os namorados das amigas e espancava o irmão menor, fazendo-o prometer não contar nada sobre suas tramas e sordidez, pois assim lhe pouparia o braço ou a perna. Prometia arrancá-los, que fique bem claro.
Depois do acidente de carro que matou boa parte das amigas que lhe restavam e botou-a numa cadeira de rodas, desacelerou.
Parou com o pó. Parou com o sexo fugaz. E parou por completo com a cleptomania mantenedora. Fazia fisioterapia direitinho e bancava a bondosa com o irmão, que, obviamente, desconfiava dela.
Também deu de confessar coisas para o espelho, que era o único que se abstinha de julgá-la. Foram meses de trabalho árduo para voltar a andar. Sair de vez da famigerada wheel chair regulável que lhe tolhia a vida.
No exato dia em que deu o primeiro passo fora da tal cadeira sozinha, recebeu o chumbo de um 38 bem no meio da testa.
Fatalidade mesmo.
Assalto mal sucedido e sua presença na hora e lugar errados, como sempre. Ela morreu na calçada da clínica de fisioterapia, estendeu-se de comprido no cimento frio e fitou-me com medo, mas, mesmo assim, com certezas consideráveis.
Eu teria te beijado se me pedisses, falou baixinho e morreu.
Verônica, cansada e semi andante, contou-me a vida inteira.
A infância esquisita. O colégio que odiava. Contou-me sobre o pai pederasta. E por fim, negou-me um beijo.
Não comi Verônica. Não tive tempo de odiá-la. Talvez a amasse desde sempre.
Nunca quis me aproximar enquanto ela era a fodona da escola ou mesmo a puta xucra que arrebatava tantos quantos lhe parecessem viáveis. Mas tinha cedido ao calor da curiosidade e visitei-a muitas vezes depois do acidente.
Tornamo-nos, posso dizer, amigos.
Talvez outra coisa que não sei definir. Penso, às vezes, que ela me disse aquilo naquele segundo derradeiro, para anunciar que se sentia redimida. Desejava ainda.
Talvez ela tivesse mudado e quisesse algo a mais comigo.
Gosto mesmo é de lembrar de Verônica impedida. Alquebrada na dureza de ossos mal acomodados, sofrendo como uma louca, as dores que outrora causou.
Verônica mal podia andar e, no entanto, pediu para dar aquele passo experimental, na luz da calçada, na frente de toda a gente que passava. Queria mostrar que podia.
Verônica morreu se esforçando, talvez por razões amorosas. Pode ser que tenha me dito aquilo por não saber o que dizer para finalizar sua existência?
Ou talvez – quem haverá de saber? – Verônica tenha fingido, deixando-me no rastro daquela afirmação por pura sacanagem, sabendo que dali em diante, ninguém lhe poderia desmentir.

J.M.N.

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