terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Cartas a ninguém (06.12.1944 – 6:23 a.m.)

Querida,

Escrevo dos campos de batalha. Chove e meu destino é tão menos meu do que era antes, quando andava a causar solidão e desavença. Escrevo depois que as bombas cortaram nossas linhas e o inimigo adianta-se em tornar tudo um único pastiche em tons de cinza e vermelho. Os escombros das casas se confundem com as sombras que árvores que já não existem e eu guardo a sensação crescente de tudo já passou por mim e que, ao fim e a o cabo estou morto, apenas esperando a hora de seguir viagem.

Mas não tenho um único tiro em mim. Nenhuma baioneta feriu minha carne. Nem estilhaços terminaram o serviço de impingir cicatrizes a mais. Estou como era, porém ouvindo tudo que se desfaz em meu redor. Sou o único de minha unidade que não tem um fuzil. Luto com a pena e registro as batalhas e as mortes em nanquim e sangue. Todos os poemas sobre a solidão já me consumiram e o que eu queria apenas era a comida que apenas as tuas mãos sabem fazer.

Acaba de passar um avião. Suprimentos de toda espécie. Os homens pulam de alegria e ao saírem de suas trincheiras, morrem por balas perdidas. Um deles tombou perto de mim, há pouco. Teve apenas tempo de dizer que sabia não estar morrendo em vão e me entregou a foto de sua esposa, acrescentando baixinho que era dela seu coração.

Fico pensando quem entregará uma destas cartas, caso seja eu a morrer de tiro ou bomba. Se isso acontecer saiba que a única dignidade que tive em vida se deu diante dos teus olhos aguados e castanhos durante nossa despedida e que tudo quanto mais quero para este mundo e para uma próxima vida é que estas linhas do front cheguem às tuas mãos, para que tenhas a certeza de que mesmo do outro lado do mundo, cheirando a morte e lama e pólvora, aquilo que mais queria era te ouvir dizer boa noite mais uma vez.

Este pensamento, querida, é o único que dá sossego e forças para continuar informando ao mundo sobre esta guerra, cuja declaração ajudei a forjar com minha insuficiente razão, mas que, caso me deixem os céus, ajudarei igualmente a acabar, sem disparar um único tiro, apenas contando suas histórias e deixando estas linhas de esperança e amor constantes, chegarem até tuas mãos.

Com amor,

J.Mattos

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