quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Cartas a ninguém (18.07.2013 – 4:59 a.m.)

Querida,

Essa letra de vidro sempre adiantada à minha vontade é a letra que distingue em meu grito o que quero te infligir e o que quero ofertar. Em mil pedaços tanto fere quanto prisma a luz dos encantamentos. Letra polvilhada de perigo e querer. Os instrumentos de tortura, as sevícias mais desumanas de um lado; do outro lado, bem junto ao que tudo sangra: a pluma, a língua ardente, meus vasos irrigando todo sangue para ti.

Escrevo essa lâmina insegura e desafortunada em formato de carta para dizer a quem venha encontrar minhas missivas, que o desespero não é nada mais que a esperança deflorando a certeza de que não há futuro entre nós. E objeto querido, introjetado, difuso em nossas linhas, nas nossas roupas antigas puídas de tanta saudade, esse objeto segredo se instala e diz que nada passa; superar é deitar-se cada vez mais com as lembranças profundas do que acabou.

Escorre de minhas mãos esse úmido e vergonhoso inseto esmagado – nossa história. Lambuza a malha dos dias, reitera o vermelho dos dramas que escrevo. Sabe a escárnio, zombaria. Mas não deixo de te escrever, Querida. Não deixo de te quere, sobretudo no poente. Com a mesma vontade infantil de quando soubemo-nos nus no meio da noite e procuramos, antes do amor, salvaguardar a pureza que sabíamos, estaria morta no instante mesmo que nos pertencêssemos.

E, no entanto, cumprimos destinos, pisadas, objetos pontiagudos. Cumprimos exaurir a lavra de ouro. Empobrecidos, destinados aos cantos da casa. Nada brilhava, nada acendia. Mesmo assim os outros nos tocavam. E tocavam ardorosamente, com a devoção de quem toca o homem que anuncia a salvação, com a mesma intimidade alegre de quem toca a pedra do outro lado do oceano, quando chega ao destino da fuga.

Agora, contra tudo o que aprendi e urrei, contra toda vela inflada no caminho contrário do que fomos, eu retorno. Piso seguro a terra em que esmagamos a grama. Nossa passagem ainda se cheira. Voltei a sentir o corpo do que fizemos, a memória densa do que trocamos como loucura, mas que era a mesma substância doce com a qual se deleitam os recém-nascidos. E renasço, pois posso pegar entre os dedos essa euforia de ter vivido para contar histórias.

Vivi para ter uma história contigo. Vivi para ter a carga totêmica e indelével do teu ser sobre o meu. E venho aqui para te convidar a ler nossa história de novo, por uma noite, um gole de vinho, um cuspe de horror – ou um sopro de Deus. Pois há indícios disso que conto em cada uma das pedras deste lugar.

Com amor,

J.Mattos

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