terça-feira, 14 de maio de 2013

O jogo acabou e faltou um pedaço

Foram vinte e três tentativas. Todas ocorridas durante a noite, período em que estávamos mais vulneráveis. Montávamos quebra-cabeças. Peças espalhadas pela mesa, um bom vinho, pertencimento. Às vezes uma música clássica. Acalmava. Tudo posto. Quando acabávamos de montar mais um era o que dizíamos. Assim foi. Mais ou menos dez anos. Um quadro de Tarsila, obras de Paul Cézzane, pictóricos de Da Vinci. Uma coleção de arte feita a quatro mãos. Sob as vontades da noite, as tonturas do vinho, a arrebentação da entrega. Haveria de não compreender a razão de ela não acreditar em mim. Mas depois parei de pensar. Não faz sentido. Estou aqui todas as noites, construindo, montando o espetáculo refinado de nossos polegares opositores. Tínhamos talento. Eu nunca tive dúvidas durante aqueles jogos. Talvez por isso ganhássemos sempre. A única vez em que duvidei foi por causa de um monte de peças de cor escura que não se encaixavam de jeito nenhum. Era um trabalho complicado formular as bordas daquele puzzle em especial. Fui tomado pela dúvida. Duvidei da beleza, do almanaque de nossos dias. Duvidei que fosse capaz de garantir-lhe segurança, mesmo naquilo em que ela vacilava. Te perdoo por não acreditar. E nada mais. Nesse único e triste trabalho, falhamos. Um cão comeu uma das peças. Só vimos depois. O papelão tufado e estragado em saliva. Disforme o pedaço que já faltava. Não tivemos coragem de tocá-lo. Os contornos escuros, a indecisão sobre a validade do artista que emprestou sua obra ao nosso brinquedo. Mas, sobretudo, aquele pedaço que faltava. Aquele espaço no meio da completude. Um vão na beleza deitada. Completamos o mosaico de mil e tantas peças e por causa de um furo, abandonei o que foi feito. Nem vi que a luz também cabia naquele espaço não ocupado. J.M.N.

Para ler escutando…

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