quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O cão demente

“Este de quem te esboço o vulto
E que, com sua arte ferina,
Rir de nós mesmos nos ensina,
É um sábio ao qual se deve o culto.”

Versos para o retrato - Charles Baudelaire

Fazia coisas próprias da espécie: ladrava, cheirava mal e tinha orelhas que arrastavam pelo chão, os passos atordoados pelo desencontro do seu corpo. Quase se podia ouvir as coisas desfeitas em seu ar desistido, entrando todas na mesma interminável agonia de despedir-se dos iguais.

Estava entre este céu habitado e confluente e as cerejeiras das quintas do Ribatejo. Crispava suas ferozes falas ao vento furioso das montanhas. E corria sem qualquer senso de direção ou liberdade, pois que ainda não sabia conquistá-la e era, por isso, impróprio para acontecer livremente.

Por todo canto de suas voltas, iam e vinham pessoas que o beliscavam, acolhiam ou atiravam pedras. Por todos os lugares por onde passou houve préstimos e maldades e esquecimentos, untados em olhares famintos, às portas de uma casa qualquer. E quando chegava o inverno era esperar que algum andarilho lhe tirasse para dançar sob a chuva de janeiro.

Fazia coisas próprias de um ser sem circunstância, desonerado das tarefas meticulosas ou duras: pequenos ossos empilhados em frente de si, buracos escavados para enterrar seu destino a cada nova primavera. Era um cão solto e enciumado. Detentor de combinações de raça e puro abandono em seus risos.

E por isso ficou logo esquecido, como se fosse um acontecimento inesperado. J.M.N.

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