domingo, 6 de junho de 2010

Prontuário

“Não quero ter a terrível limitação de quem vive
apenas do que é passível de fazer sentido.
Eu não: quero uma verdade inventada.”

Clarice Lispector

Meu amor anda internado. Interditado na ala psiquiátrica do meu hospital de dentro. Anda recebendo medicação pesada e, por isso, sua fúria conhecida dorme e seus braços andam mais sobre meus próprios sonhos do que noutro lugar.
Meu amor conversa sobre demências, ecos, cidades. Já concluiu o mapa da costa de dois continentes e não se encontra, não trás certezas de que lá existem habitantes antigos ou animais exóticos.
Meu amor tende a passados, a providência divina e rezas sussurrantes e atávicas. Faz menção a corpos e anuncia presentes, mas nunca confessou futuro algum. Nenhuma prova de décadas ou eternidades.
Meu amor detesta açaí de tarde. Em vez disso suja os dentes de carne e beijo. Molha-se em lágrimas de saudade, desespero ou incompetência. Está novo em folha para um livro de memórias e acontece, acumulado e cínico dentro do vento de maio, dentro do vestido dela.
Meu amor é um coroa enxuto que anda no parque e tem aversão à meninada seca por dentro, cabendo em risos vulgares e peles bronzeadas artificialmente. Acolhe camafeus como heranças esse diabo. Flerta com Deus, mas por desgraça e pena, jamais por esperança de que promova céus ou capacidades.
Está pela hora da morte esse amor de unidade que me converte. Que me desanca e me rasga com toda força. Que desobedece a mais simples regra de convivência, o respeito mútuo. É para dentro das entranhas que ele se projeta e quando morre ou corre ou se agiganta, dilacera, arranca tripas e tranqüilidade.
Meu amor desconhece ruína ou limite. Mesmo dolorido, mesmo gangrenado, ele floresce. Abre em copas majestosas a minha escrita. Disseca a ferida anterior como um perito e cobra o que tem de cobrar. Acumula riquezas que nem eu as conheço. Meu amor é um terço que se prolonga num cântico. É a ode refeita dos séculos inteiros. Arfante, odorífero e cheio do que me deixaram pelo caminho. J.M.N.

Um comentário:

Anônimo disse...

lindo texto... tava sentindo faltar de entrar no blog.

Bjs.

Melissa