segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Atrás da noite

                                                "Nada há que não caiba no sono:
                                              Um dia vermelho, a dor de nascer sozinho,
                                                         tua vida sem mim, a minha sem ti.
                                                          Pouco há que me revista o tempo:
                                           Teu retrato ferido, tuas mãos a escolher-me,
                                                                       Poentes cantados a dois.
                                                                 O livro dos artefatos do nada

Foi lá para se consultar e terminou apaixonado. Apesar do desastre, nada mudou enquanto ele não disse que sentia saudades. Ela se iludindo porque não sabia se queria ser descoberta e ele assustado sabendo que se perdera. Um típico caso de amor em vieses, mas menos intenso porque a dona da coisa não ardia com inquietações apaixonadas sobre encontros e vinhos adormecentes. No dia do sushi, ele se admirou com a quantidade de coisas que ela podia falar num único minuto. Não conseguia acompanhar o ritmo dela. Deixou-se, por assim dizer, ser conduzido. E foi. Tinha uma certa esperteza e segurança naquelas coisas ditas sempre, em almoços de sábado. O que não havia era a intenção de amar. Pelo menos de sua parte, pelo menos naquele instante. Talvez de ambas as partes as coisas se tenham dado meio ao acaso. Se é que se pode dizer que as coisas ocorreram de lado a lado. Mas ai umas das dores se instalou primeiro.

Vamos aos fatos...

Não coração, prefiro não ir a essa micareta absurda... Muito barulho, pouca intimidade, sabe? Mas olha, posso te oferecer café da manhã, companhia e massagem nos pés. É claro que uma parte desse diálogo foi omitida (aliás, aquela em que era quase um pedido, a história de amanhecerem juntos) e mais ainda, as coisas que insistiam em se formar na cabeça dele... Caso não saibas, detesto carnavais fora de época... Terei que ir um dia desses com você?. Não faça isso, senão sou capaz de aceitar um novo convite. Muito estimulantes essas coisas que me dizes!

Ela mandou esta mensagenzinha maldosa para o celular dele e naquela hora, também o maldito aparelho se acostumou com ela, pois quando ela parou com as confissões medidas, ele teve a impressão de que sua bateria esvaia-se mais rápido a cada minuto de silêncio.

No sábado, depois do susto das descobertas recentes e um almoço intragável, pois sem ela a lhe ensinar malabarismos japoneses, mais uma vez ele fez o papel de entregador. Pôs-se numa bandeja e foi lá ter com ela. Sobrou um domingo inteiro de espera mutua. Depois das desculpas formais a sinceridade de estar se atrevendo a dar com os burros n`água.

Tenho saudades… Quero te ver... Quero mais da tua presença… Mais que qualquer coisa já quista... Um capricho é permitido... Andas muito ocupada com os cuidados para o alheio… Eu ando ocupado de ti... Se me incomoda?... Só quando isso não cabe nos teus dias de semana…

Mas deixando de lado as marmotas do acaso e da grave rebeldia que ela insistia em revestir de distâncias, a semana passou muito lenta.

Foi quando ele percebeu que as coisas eram mais complicadas do que já pareciam ser. Finalmente um grito do hospital de dentro, chamou-lhe para a realidade. Amor, de novo amor. Irremediavelmente. Os sábados não seriam mais os mesmos.

(Problemas e coisas que infestam pensamentos)

“As prestações vencem na segunda. Meus olhos estão murchando. Conto com as coisas inventadas para saber-me decente e merecedor de uma promoção. Minha chefa é uma débil qualquer coisa. Tudo vale no combate à dor de ontem. Quero os doces especiais de um lugar que não conheço. Amor! Acenda-me. Cuide-se, pois eu te quero. Eu não sou ameaça. Ameaçar é verbo que não pronuncias nunca. Deixa-me morar nos teus amanheceres?”.

Um turbilhão de coisas nefastas invadiu a cabeça dele. Para além de todo o rico vocabulário daquela situação de enamoramento, as palavras manobravam seus terrenos e alojavam-se como facas nas suas incertezas. Palavras por dizer: crença, mobília, novidade, viagem, sozinho, toalhas, cremes, costas, batom, esmeraldas, ladrilhos, beleza, tua, eu, quando, sozinho, sozinho, sozinho. Não.

Nas desesperanças daqueles dias infinitos ele deixou escapar-lhe mais saudades. Ela escapou com as coisas de sempre. Aquilo que se tem é o que se dá. O que se pode dar, melhor dizendo. Ele podia mais talvez, dada as circunstâncias e o histórico de baú aberto, sem tempo ou tampa que possa segurar dentro, as coisas que talvez não se deva contar a ninguém. Mas o pouco a se dar, naquele caso, significava um abismo imenso de coisas a fazer, dizer e sentir. Olha, confessa logo, vai! Não queres e pronto. Pára de fingir. Eu não suporto essa agonia adolescente de querer te ver a toda hora. Tô quase para fazer um diário. Enfeitar o calendário com cores absurdas, marcando as datas e lugares onde fomos instantaneamente felizes. Usar expressões do tipo, ficar e beijar longo, como se dizia quando era tudo bom e maior do que amores eternos. Na sétima série tinha mais amores do que os outros. E isso me fazia melhor?

A sugestão que segue é como se eu os conhecesse. Pudesse falar e fazer algo além de registrar essas linhas que contam pouco do muito que era visível estar instalado. É o seguinte...

Que isso acabe. Da melhor maneira. Com ou sem dor, que as coisas sejam atraentes o suficiente para numa noite qualquer daqui a vinte anos, um dos dois possa dizer... Uma vez eu tive esperança de estar amando (ou sendo amado). Dissipem a rispidez das defesas com a ternura quase santa da não despedida. Fiquem. Um no outro. Como pertencentes. Coisas mútuas, apesar de discrepantes. Mas com coragem para as diferenças. Olhem mais. Sorvam mais. Adotem coisas, filmes, animais e papel de pão para as coisas sem importância do dia-a-dia. Leiam clássicos. Deslumbrem-se. Animem-se ao sair de dia e ter a certeza de que terão alguém a espera. Mordaças já não cabem, assim como a escravidão. Não mintam. Digam. Não morram. Vivam-se.

Na sexta-feira, depois de muitos desencontros ele ligou.

- Queria ouvir tua voz.
- Fiquei mal desde anteontem.
- Viste minha mensagem?
- Já depois de um tempo.
- Quase vou ai.
- Ias me pegar de pijamas.
Queria muito. Tem flores ou super-heróis estampados? (Um não dito)
- Amanhã sei que vais estar ocupado, mas te ligo mesmo assim.
- Vou gostar.
- Tudo de bom.
- Pra ti também, mas também liguei para te dizer que não quero que te afastes.
- Isso não vai acontecer.
- Então até. Dorme bem. Como se eu mesmo estivesse ai para te fazer dormir e despertar em segurança (ou não dito). Questão: como deixar de dizer coisas assim?

Ele pensou que as coisas já se passavam e que, de alguma forma, suas esperanças deveriam encontrar um abrigo. Dormiu e acordou como fazem os loucos. Bebeu água. Transformou-se. Aflito que estava pela descoberta de algo novo. Queria contar a ela. Queria invadir seu apartamento de pantufas e cuecas de seda, pedindo-lhe simplesmente para ficar. Como não poderia mover-se daquele cansaço antigo, virou para o lado e cantarolou Tomara, do Vinicius. Torceu para que a manhã lhe trouxesse boas novas e descansou finalmente da sensação de estar sozinho. Mesmo que ela não o pudesse ouvir, foi o mais sonoro dos “boa noites” possíveis. Desfez-se a impressão de abandono e a noite se ergueu como um guia. Atrás dela, um sem fim de estranhos finais felizes, como filmes inacabados e ganhadores de prêmios, esperando para serem estrelados por eles. O sorriso já nasceu sem consciência. Sonhos, afinal, não levam mais que um segundo para trazer alegria.

                                         Swanage, 23 de setembro de 2003.

Um comentário:

Lo disse...

Senti o estranhamente familiar.