segunda-feira, 2 de maio de 2011

De olhos bem abertos

O canto era como um imenso choro descendo a estrada. Muitas vozes tristes, porém não apenas por aquele momento. Eram tristes as vozes desde sempre. Desde que nasceram as pessoas que as tinham, que cantavam naquela manhã fria no interior do sertão cearense. Eram vozes que se arrastavam no tempo, desde que os avôs e bisavôs daquelas pessoas foram esquecidos pela água no sertão.

Aquilo pode fazer um bruto morrer de pena. Aquelas vozes escorridas na tristeza que vinha antes delas. Vozes que tinham entidade própria e que pareciam estar muito além daquelas mulheres que as portavam. Aqueles finos elementos de carne e humanidade. Perdidos nos confins daquele sertão e marcadas para sempre nos juncos de seus sonhos mais sozinhos.

A cantiga tinha as palavras adeus, vida, amor, saudade e morte. A cantiga entoada como uma argamassa de serenidade naquele desespero que era viver de pó e sapos, do sertão. A cantiga estava agora em todas as casas, em todas as vozes e mesmo aqueles que eram de fora, saíram às ruas para cantar e de olhos fechados, pedir aos seus deuses, santos ou ancestrais que olhassem por aquelas vidas tão finas que andavam num cordão de despedida, rumo ao cemitério da vila.

E foi então que ele viu a razão do canto chorado, da passeata com dor franzina que aquelas mulheres faziam rua acima. Os homens na roça se acostumaram a precisar de apenas mais um dia suado e duro para esquecer o acontecido. Era comum. O que ele vira, a criança morta nos braços de uma mãe tentando resistir ao vício de enterrar seus rebentos. Aquele vício que a falta de tudo lhe dera. Ela cantava sem lágrimas, puxando o cordão de vozes até a cova pequeníssima.

A criança de olhos bem abertos parecia escutar a cantiga que ia ficando compacta enquanto tantas vozes se somavam aquilo que se tornara uma perda de todas as mulheres da vila. Apenas mulheres se arrastando. E crianças que ainda não caminhavam direito, indo ao encontro da terra grená, desatentos ao corpo inerte que servia de razão para a cantiga que agora comia a fraqueza dele e o fazia entender o que era a morte e o que era a vida.

Quando tudo sumiu no silêncio da tarde, atreveu-se a perseguir a mãe e dar-lhes os pêsames. Ela o olhou de baixo a cima e disse: precisa não moço, essa tá nos braços de Deus. O burro da cidade ainda a tentar entender as compensações do lugar, perguntou à mão porque a criança ia de olho aberto à sua cova – nunca fez mal a ninguém, não teve tempo, ganhou direito de ver Deus olho no olho.

Elementar a pureza da resposta. A vida lhe pareceu ainda mais cheia de mistério e a cantiga que aprendera naquele dia de morte, salvou-lhe do desespero muitas vezes nos anos seguintes. Tinha as palavras adeus, vida, amor, saudade e morte. J.M.N.

4 comentários:

Wagner Dias Caldeira disse...

Sempre achei uma imagem aterradora essa da criança sendo enterrada com os olhos abertos. Mas ainda, depois do teu texto, aterradora é a resignação e a compreensão da finitude dessas mulheres.

José Mattos disse...

É que parece que elas, por morarem naqueles confins e serem privadas de tantas coisas triviais a nós, têm alguma informação sobre a vida e a morte que nós não temos e jamais teremos.
E isso, sem dúvida, dá um pavor.

J.Mattos

Anônimo disse...

Nossa, lindo isso.
Que cena deve ter sido!

M.

Anônimo disse...

Ai essas palavras...