segunda-feira, 9 de maio de 2011

Cinco memórias fósseis

Primeira

Como um dilúvio me acabou em choro longo a sua morte. Vós que sempiterna me dizia eternidades e resgatava essa forma de vida anterior ao tempo que vai em meu peito. Minha arca regra-se por essa linha líquida da minha terra sozinha, depois de ti. Minha arca ainda espera encontrar o sol prometido e deixar a correnteza para finalmente pisar uma terra firme que seja. Vou, enquanto isso, seguindo astrolábios. Quem sabe volto quando simplesmente me der vontade.

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Segunda

Da cruz que me foi dada resta o corpo do homem que nela morreu crucificado. E se fica só o corpo, só o homem, sozinho em sua essência e paralisia sem a cruz para talhar-lhe a postura – o que fica afinal? Desconfio que este corpo não é mais santo que o meu próprio corpo abandonado.

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Terceira

A velha saiu da casa. É hora de agir. Roubaremos apenas o essencial: biscoitos, seus chalés, suas velas vermelhas de chorar pelo marido. Isso, não! Grita-nos ele, cheio de ética, bem à porta do crime. Fomos empurrando o santinho até o quarto dela. Bem em cima da cama, quando ninguém estava esperando pula um gato. Nosso grito conjunto espantou o animal. Ele que nem queria levar nada, pela raiva do susto, foi logo dizendo: leva tudo que eu aqui não volto. Estava feito um ladrão ocasional. Aquilo roubou algo a nós, mas nisso já não penso desde antanho.

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Quarta

Foi um beijo. De língua e tudo. Foi um roubo afugentado por um badalo de sino. Depois eu soube que era apenas o relógio importado da mãe dela. Foi um susto. Um despertar que dura até hoje. Foi um beijo que durou uma vida inteira, morreu e voltou em forma de passarinhos e letras de músicas que eu jamais tive a coragem de compor. De tarde, sentado no balcão de casa, ficava vendo a vida passar como um preguiçoso qualquer. Ninguém sabia que tudo quanto era pensamento meu tinha um gosto. Não era preguiça, era lembrança. Saudade instalada enquanto eu não tinha medo de nada.

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Quinta

Anônimo. Assim era meu passar por ti. Enquanto estive entrincheirado nas linhas daquela geração que me precedeu e deu tanto, fui quase um caracol, cujo tempo se escreve em séculos. Mas ai, morri pela primeira vez e tive de reconhecer, com certa dor, que meu silêncio seria apenas um culto ao anti-eu. Ai me descobri. Nos risos delas, dentro das suas unhas, pelos potes de maquiagem. E virei isso que se emancipa agora. Um cordeiro que fugirá sempre do aguilhão do carrasco. Benevolente, mas conspícuo. Um ser apenas. O qual quero que conheças agora.

J.M.N.

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