sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Exército da salvação

Coube a Camilo a caixa com soldadinhos de chumbo raros, como espólio. Primeiro ficou chateado, jogou a caixa num canto qualquer da última gaveta do armário. Todos tinham recebido coisas melhores, pensava. Não podia entender porque seu pai havia deixado apenas os soldados de chumbo e não joias, ou seus discos ou dinheiro vivo, como esperava. Nem era mais criança, urrava, lembrando daquilo que recebera.

Uma semana depois de seu pai morrer chegou uma carta endereçada a Camilo. Seu pai morto era o remetente. Enviara de um posto dos correios próximo à sua casa. Na carta o pai informava que os soldadinhos de chumbo, na verdade, eram de ouro maciço e que seu pai, avô de Camilo, os havia pintado para esconder dos soldados que o levaram preso, em 1964. Eu os guardei como meu maior tesouro, dizia o pai na carta.

Além disso, havia um sem fim de declarações e revelações na carta de seu pai, as quais Camilo jamais imaginou poder conhecer um dia. Dentre elas, havia uma passagem que lhe mudou completamente o dentro. Às vezes sinto que vivo uma vida que não é minha, meu esquecimento entorta tudo quanto senti na vida e me leva para onde não há nada senão esquecimento. Só sei que estou de volta quando lembro de chamar por ti.

Camilo correu ao armário, retirou os soldadinhos da caixa e os dispôs em linha na prateleira que antes estava recoberta pelos eletrônicos que ganhara de seu pai, ao longo da vida. Aquele exército colorido com a alma de ouro puro guardou Camilo por toda a vida e o fez vencedor de muitas batalhas, mas, sobretudo, o fez saber que jamais estivera só no mundo. J.M.N.

2 comentários:

Wagner Dias Caldeira disse...

Momento único esses de descobrir a preciosidade em vestimentas ordinárias. Tenho-as achado, às vezes eu mesmo, às vezes pelas tuas cartas.

Tua escrita tem cepa. É daquelas de quebrar os dentes de cupim. A mim, basta-me saber descanso nos seus arredores.wdc

João Felinto Neto disse...

PEDESTAL DE BARRO

Revogo silêncio
ante palavra e voz.
Reato os nós
que me prendem ao medo.
Reavivo memórias
em busca de segredos
que já não interessam mais.
Reclamo por paz
em meio a intensa guerra.
Replanto a erva
que não nasce mais.
Relato as dores
de males e fome.
Repito o meu nome,
antes de dormir.
Reato os laços
que me prendem aqui,
ao pedestal de barro.

João Felinto Neto