Nós paraenses somos de uma região muito vasta. Verde pelo deslumbre da floresta Amazônica, pouco valorizada, em termos humanos, dado o modelo exploratório que se nos acerca desde tempos imemoriais. Sofremos também da classe dois da doença do esquecimento, mal social comum no Brasil, cuja classificação dois é a mais grave, pois tem como sintomatologia não apenas a superação inócua de fatos históricos, mas também a nefanda prática do silêncio acerca de nossos males de outrora e de hoje.
Dois exemplos de superação dessa condição são os livros Operação Araguaia e Sem Vestígios, cujo teor é tão contundente que requereu, em alguns momentos, pausas estratégicas para a recuperação do fôlego da leitura.
No primeiro livro, Operação... Taís Morais e Eumano Silva abordam com fontes muito bem apresentadas e exploradas, o vergonhoso esquema de negação e encobrimento que as Forças Armadas Brasileiras sempre fizeram em relação à Guerrilha do Araguaia, comandada pelo Partido Comunista do Brasil – PCdoB, nos anos 70. Segundo os militares todos os arquivos concernentes ao movimento ou não existiram ou se existiram algum dia, foram destruídos. Os autores provam que isso não passa de mais uma mentira fardada.
Em mais de sete anos de pesquisa e entrevistas com militares, os autores vasculharam documentos secretos que restituem imensas memórias de um período de luta armada, enganos, mentiras e confrontos ideológicos impressionantes. O livro conta magistralmente a história da primeira baixa militar do confronto, a do cabo Odílio da Cruz Rosa, fuzilado pelos guerrilheiros, assim como destaca a caçada feita aos guerrilheiros remanescentes. Assim como encontra os rastros de uma convivência da população com um grupo de jovens dedicados à liberdade e a derrubar a ditadura militar no Brasil, cujos frutos são histórias impressionantes de solidariedade e atuação social.
Já em Sem Vestígios, Tais de Morais, meio que “presenteada” por uma fonte que conviveu de perto com dos agentes secretos da ditadura militar, chamado no livro de Carioca, aborda um conjunto de registros em forma de um diário de culpa e atordoamento, mas também documentos que indicam de maneira crua as atrocidades que praticadas os porões da ditadura por este e por muitos outros peões do regime.
Em muitas passagens do livro, narrado em primeira pessoa, como e fosse a voz do além de um homem atormentado pelos serviços “patrióticos” a que foi destacado cumprir, soam como contos de terror, de realismo fantástico até, uma vez que imaginar tais cenas e requintes de violência e crueldade se torna bastante difícil longe do contexto daqueles dias, o qual longe de justificar, ao menos, evidencia a existência de uma dura oposição de ideais e concepções sobre a conformação de uma nação.
Carioca narra com detalhes, as ações que culminaram na prisão e morte de David Capistrano da Costa, para cujo final terrível foi convidado como expectador e teve, pela primeira vez em seu funesto trabalho, a sensação de que algo mais lhe saía das entranhas. Não apenas o mal estar pela cena horrenda de vilipêndio de um corpo morto, mas também o questionamento de se estaria servindo realmente a uma nobre causa.
Mergulhar com o coração apaixonado por este período da história brasileira, nas páginas de qualquer uma destas incríveis obras, é ter de enfrentar a sensação de impotência e revolta que cresce a cada avanço de linha e página e, igualmente, a cada escândalo eclodido no ventre de nosso Estado. Torna-se, pois, uma tarefa que deve ser cumprida com respeito aos limites de nossa indignação, pois em muitos momentos nos faz confrontar com a triste realidade do esquecimento, com as indecentes conexões que personagens, de ambos os lados, mantém atualmente com os bastiões do poder no Brasil, forçando às perguntas: com que ideologias ou preceitos, estamos sendo governados agora? Onde estancou a forja de nossa democracia? Ela existe de fato? J.M.N.
3 comentários:
Não podemos esquecer dos colonos que também foram torturados sem saber nem porque estavam sendo. Hoje as indenizações são apenas pros guerrilheiros, mas essa história tem muitos outros mocinhos.
As indenizações - financeiras ou históricas, à guisa de recuperação de percursos e papéis - sempre vêm a menor.
Ouvindo as gravações que fiz com o Zequinha do Araguaia ("Guerrilheiro Nativo", como gostava de ser chamado), em São Geraldo, 2002, fica claro um orgulho em ter participado da guerrilha.
Apesar disso, tens razão, a história desses guerrilheiros "nativos" ainda não foi contada.
Mandei um mail para a Tais Morais, autora dos livros, a fim de tê-la mais perto do palavras e quem sabe, ser uma das nossa entrevistadas.
J.Mattos
Cheguei. Obrigada pelo belo post e pela forma honesta de apresentar meus "filhos".
Num primeiro momento quero registrar minha alegria em ter feito um trabalho que mergulhasse tão fundo neste lago obscuro.
Foi difícil, árduo e indigesto em alguns momentos.
Quando convidei Eumano Silva para trabalhar comigo em 2003, eu já possuia todos os documentos militares, ao todo 1197 paginas.
Demorei de 1996 a 2003 para juntar tudo e de 2003 a 2005, já com Eumano, para terminar a história.
Em Sem Vestígios os papéis que me chegaram eram apenas cartas, registros de uma existência dolorida, sem sentido, nervosa. Juntei as cartas com vários depoimentos e uni as histórias, tendo assim, a certeza de serem verídicas.
Minhas unica tristeza é saber que o nosso povo se importa pouco com seu passado.
O governo e aqueles que participaram do processo de democratização só pensam em indenizações. de um lado para manter calado, de outro para encher o bolso. Isso não é orgulho pra ninguém.
Os camponeses do Pará são os meus heróis. nunca tiveram nada a nao ser boa vontade com todos e calor humano, aturaram desmandos e desvairios, são esquecidos pelo governo e não ganharam indenizações por terem apanhado e perdido terras ou lavouras.
O Brasil, que pena dizer isso, vive de pão e circo. A história se perdeu num emaranhado confuso de egos elevados e ansiosos pelo poder.
abraços
Postar um comentário