domingo, 20 de dezembro de 2009

Ela me vem quando a chuva cai

Nem cedo nem tarde. À hora dos ventos. Quando se anuncia o dilúvio e as janelas se fecham, as casas e apartamentos vão engolindo as pessoas, as garagens vão tragando os carros e só os necessitados, os imprudentes ou os loucos de amor mergulham em seu tecido híbrido – água, raízes e a maré do tempo. Só quando tudo está espesso e líquido e as coisas ganham os matizes translúcidos é que ela me surge. E vem com cheiro de asfalto molhando. Com os humores da terra dos pequenos cantos da cidade que resistem à nossa ocupação. Ela vem desajeitada e contente, sempre no sorriso que me desmonta. Justamente quando a pele das ruas e das calçadas se renova escorrendo seus dejetos e pegadas, ela surge em minhas tentativas de sanidade. A água da chuva lavando tudo é como aquele primeiro despertar sem culpas que tivemos. Irretocável. Insubstituível. Quando cai a chuva me ocupo daquela mulher sem presságios ou derrotas, sem diásporas ou multidões. Acerco-me de seus olhos, de sua ruptura com este mundo, de sua tragédia pessoal e imposturas. Ocupo-me de seu desterro, de suas cicatrizes. Ao longo dos fios líquidos eu penduro minha desistência, teço minha fábula sobre o que fomos e reformulo a química de meus lamentos. Quando a chuva cai, ela me vem desnuda e serena, nítida e impossível. Agravada por minhas sinestesias mais antigas, transportando meu evento de existir para um útero ou uma escolha, para entre o sim e o não, o pecado e o perdão. Quando a chuva cai, abro os braços e espero que sua presença me encharque e violente, até me sentir banhado e renascido. J.M.N

Um comentário:

Anônimo disse...

vejo que estás postando no mesmo momento que te leio. Coisas boas que a internet nos proporciona.
Achei lindo isso: "Quando a chuva cai, abro os braços e espero que sua presença me encharque e violente, até me sentir banhado e renascido.". acho impressionante escrever algo assim, tanto quanto ler.