sábado, 26 de setembro de 2009

O sono dela (ou Ensaio sobre o manso)

“Quando o homem dorme,
seu rosto se desmarca de todas as tramas
e de todos os desgostos.
Nada enternece mais uma mulher
que o rosto do amante, dormindo.
Ela se debruça sobre a face do amado
e descobre que eram simples palavras
todas as valentias que ele
lhe vinha dizendo ou dando a entender.”

Antonio Maria Moraes de Araújo
– Considerações sobre o sono, 1956.

Ela sempre se despedia primeiro. Não sem antes dizer que o som estava bom, a luz não incomodava, não teria problemas em dormir. Enfatizava o calor dos meus braços e a amplidão da minha voz dizendo-lhe: dorme bem, com um sorriso de olhos fechados e o corpo à disposição dos meus cuidados. Eu nunca lhe contei o que se iniciava depois de sua partida. A guerra silenciosa para me ater às imagens da TV. Minha insônia era bem vinda nestes momentos. Até tinha devaneios, sonhos diurnos de olhar para ela dormindo. E quando acontecia de um suspiro soltar-se de seu dentro, eu tirava o som da TV e tentava convencer meu corpo a gerar mais calor para seu sono acontecer completo, retornando à neutralidade do manso. Nunca deixei tantos filmes pela metade, ou me abandonei tão fundo no segredo de pulmões se enchendo. Nunca foi tão feliz o ressonar de outro ser. Enquanto as contas acumulavam e eu antevia desertos, desgraças e distâncias imensas, uma vida inteira acontecia no sono dela. E me confortava a realidade de tê-la tão próximo. De sabê-la tão oposta àquela condição de descanso, pois todos as noites em que se aquietava ao meu lado eu podia secretamente confessar-lhe meus afetos, minhas paixões, minhas dúvidas e capturar-me em sua beleza humana e algo desprotegida. Pude adorar mais que ser adorado. Pude entender do que são feitos os sonhos de uma mulher. Suas falas desastradas, seus efeitos de sono solto, convocavam-me cada vez mais ao centro de sua vida, ao interior de suas cavernas, ao páramo de sua ilha. Era feliz adormecer ao seu lado, muito tempo depois dela. Despencando aos poucos das alturas de minhas expectativas com a vida e com as manhãs seguintes. Era bom ser o único expectador de sua beleza adormecida e ir me entregando aos poucos, sem desistência, apenas serenidade, dizendo na voz mais baixa, no auge da mansidão dos lençóis: abre as portas do teu descanso para mim. J.M.N

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá José,

adorei as suas linhas,de uma sensibilidade incrível,tocante.Ainda acho que suas linhas se aproxiam de José de Alencar quando exaltas a beleza feminina bem contemplativa,os mistérios da amada,a descrição minuciosa de onde acontece a cena.
Deixas um mistério no ar..."Pude entender do que são feitos os sonhos de uma mulher".Sensacional isso é a busca de um poeta...Lindo


Hellem.

José Mattos disse...

Obrigado Hellem...
Volte sempre.

J.Mattos