quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Retórica

O que me falta? É o que pergunto.
Argumento oculto para dizer-me sozinho, eu tenho. Mas não me basta. Não basta, de certo, àqueles que invadem meus sonhos. Minhas sentinelas rotas, meus arquiinimigos.
Ela estava à beira da morte em minha inconsciente experiência. E o gosto de sua extinção me embebeu em suor e vigília, me despertou. Inaugurou um pretérito feliz sobre o qual miligrama nenhum faz esconderijo.
Esse vago e assassino sonho, causou o estranhamento que me acompanha durante o dia.
Desassossego de sentir como que uma lâmina abrindo o ventre, a dor interna de uma terra desocupada, canteiros vazios de frutas, odores e criaturas que rastejam.
Quando a encontrei em meu sonho e não pude ver o seu rosto, constatei que ainda sinto vergonha. A costura de minhas roupas desfeita. Meu corpo nu pedindo abrigo no meio da multidão.
Essa é uma imagem de desespero, desamparo. Meu medo acordou minha saudade que dormia um sono solto. Tive forte sensação de estar incompleto. Fortíssima impressão de estar perdido.
Porém, mais que tudo, tive a certeza de estar sentindo a falta dela. J.M.N.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Entre a luz e lugar nenhum

Em minha memória

“…assim éramos nós obscuramente dois,
nenhum de nós sabendo bem se o
outro não era ele-próprio, se o incerto outro viveria…”

Fernando Pessoa (Na Floresta do Alheamento)

Estou deitado tempo demais, um fantasma ao meu lado. Seus olhos me fitam e eu não consigo desviar o olhar. Quero saber o que ele me traz. Que tipo de assunto pode tratar seu olhar de antigamente, isso me faz perder a cabeça. Eu espero que possa dizer as tais palavras novamente um dia. Talvez seja isso, aquele fantasma quer me alertar para algo sobre amor e eternidade. Quem sabe impossibilidade e alento, letras e um bom vinho tinto. Meu sangue procura vasos esquecidos em meus órgãos. A única coisa que sinto além do frio de dezembro é a tua ausência. Meu peso escasso aperta a cama em sinal de existência. Apenas assim me identifico. O fantasma bem ao lado continua me olhando. Ele parece ter o rosto de meu pior inimigo e está chorando agora. Sua lágrima molha a cama. Sinto-a com a ponta dos dedos. Uma lágrima de além dessa vida, quem sabe. Trago à boca. Seu sabor me esclarece. Meu olhar agora é o olhar destinado a mim pela entidade ao meu lado. Meu inimigo sou eu. Esse fantasma com lágrimas doces que me estende o braço é tudo aquilo que esqueci quando te foste. Esse cheiro de agora não sei se é terra ou madeira. Meus músculos acordam. Tenho entranhas novamente. Mas antes de levantar um último beijo na boca etérea de meu fantasma. Minha tristeza evapora e como nascido há pouco me restauro no mundo das presenças, tudo me faz falta. Me ponho a andar. Visto a roupa mais bem passada que tenho. Saio de casa. Da calçada diante da porta olho a janela. Não é mais um fantasma que vejo, mas um passado inteiro me acenando. Aquela lágrima doce nascendo novamente em meu beijo. Foi quando percebi que havia uma música tocando em algum lugar e que de alguma forma, me dizia o chumbo do céu chuvoso, tudo não passa de vento e vontade, um dia após o outro. Nenhum fantasma me espera e a história me anda gritando esperanças finalmente. J.M.N.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Os dias passados não são minha vida

Tenho contado os dias de trás pra frente, como ele me ensinou. Tirante o fato de que ele morreu, penso que é uma boa saída para estas perguntas que me Vêm sempre à cabeça quando estou prestes a dormir. Aqueles dias não são minha vida, não fizeram tudo o que sou e, no entanto, dizem tanto de mim. Trazem uma multidão de adjetivos que poderiam muito bem descrever o que fiz, porém não o que sou. Isso não é uma desculpa. Tampouco uma explicação. Isso é o que é... uma conversa, apenas isso. E quando digo em voz baixa que queria ser feliz penso em ti. Quando subo as escadas do shopping e encontro uma pessoa amiga, queria estar contigo. Quando olhos os livros lançados no último ano, sempre vejo as letras do teu nome a se formar diante de meus olhos. Pior de tudo: quando penso em ir para casa sozinho é a tua falta que cabe em tudo quanto queria que estivesse dentro daquelas quatro paredes. Todas as cenas das quais me arrependi. Todos os usos indevidos da confiança que me entregaste. Toda a gama de feridas deixadas e a intranqüila notícia que tive dia desses me fazem pensar que fiz tudo errado e mesmo assim, não consigo encontrar razões para dividir o que encontrei. E mesmo que esses dias de agora também não sejam toda minha vida, a maior invenção que produzi nasceu neste interlúdio entre minha nostalgia e a conquista da minha solidão. Tenho planos de seguir vivendo. Arcando com aquilo que me cabe nos bolsos e trazendo a casa dos nossos sonhos entre as muitas linhas e gritos que ainda pretendo criar. J.M.N.

Para acompanhar a leitura… Let’s shake the house

Inventa que eu nunca saí

Convoca a mentira. Faz dela algo branco e com pétalas, inspiração para um pedido de socorro – um desejo de viver daquilo que estava ao nosso alcance. Inventa um roteiro, uma história de noites felizes, odores suaves e nada daquelas pelejas duradouras dos últimos anos. Desiste das prestações da tua casa e caça os ventos marítimos comigo, velas estufadas de nossos sopros de amor. Correndo pro norte, sempre adiante, inventa a minha fidelidade galante, minha tatuagem de sangue, meu diário de bordo com coisas apenas sobre nós. Me chama exclusivo, único, maciço aprendido entre tantas coisas duras em tua vida. E depois me atira no espelho, parte essa imagem que é menor do que podes vir a ser um dia. Colore os rabiscos, compra nanquim para os traços finais. Faz qualquer coisa para eu ser apenas teu. Faz qualquer coisa para eu ser sempre apenas comigo. Inventa que eu nunca saí. J.M.N.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A falta do filho

Para o Cauê,
que deve estar acordando com os sons do oceano nesse instante.

Ele se foi e com ele avos incontáveis da minha essência. De repente um espaço nulo, ostentando nada senão a distância. Um oco que engole tudo. Nos últimos dias um sentimento de completude e coragem, vindos certamente das coisas que havíamos de fazer juntos. Vencer a escola, certidões para a viagem, presentes de natal, roupas para arrumar nas gavetas de casa. Ligando tudo, esse sentimento cumulativo e anterior ao tempo, cuja textura demarcada na pele deixa-nos únicos, marca indelével da espécie. Ele me continua. Não a partir de onde eu parei, mas sim daquilo que a ele é possível entender e seguir. Vejo meus dedos em suas mãos, meus trejeitos em seu sorriso e minha solidão em sua escolha por paixões mais além de seu tempo. Sinto saudades e isso é imenso. Vontade de ouvi-lo perguntando sobre problemas de matemática, sobre a origem de nomes das bandas das quais gostamos. E reconheço nisso tudo o que não tive. Ao fazê-lo eu achava estar pondo alguém no mundo, talvez, pretensiosamente, dando um mundo a alguém. Quando ele me chama de pai, vejo que o mundo todo cabe nessas três letras. Foi ele, enfim, que me premiou com o melhor lugar dessa existência. J.M.N.

A nova idade

Ela não levou nem trouxe meu sorriso. Deixou-me à vontade para ser quem sou. Para encurtar caminhos ou esperar uma eternidade para dar-lhe um beijo no rosto. Liguei para dizer que senti sua falta e transitava ardente nas lembranças de seu cheiro. O que saiu foi apenas um apelo curto à saudade que nem de perto era a que eu verdadeiramente sentia. Não uma coisa apaixonada ou sem freio. Ela existe além de meu mundo. Com sua pele morena e afago silente. Os lábios em carne suculenta e morna. Recebeu-me de manhã perguntando pelo fim-de-semana e eu sem quase nada para responder, dei adeus. Um cheiro inconfundível de enlace. Mais que isso, uma entrega afável e secretamente já feita. Ela tem minha companhia, tem o poder de atender meus telefones. E nela, sem que saiba, está uma inspiração que há muito não tinha – a novidade de um abraço sem convidados, onde destinos podem nascer trocando beijos. J.M.N.

Literária

Ela me vem pulsando, como um som intermitente. Mal feita em traços, pois nunca a senti com os dedos, jamais lambi suas curvas ou escrutinei sua estrutura óssea com os dentes. Porém me encontra no sono, na fila do caixa, na espera do trânsito. Chega com um cheiro próprio. Que mesmo ainda imaginado me constrange, me desregula. Fico com as narinas em carne viva. Um cheiro de entranha, de coisa espúria, mas atraente. Suas palavras de cabaré pedindo para irmos à cama, jogada ao longe a declamar poemas. Vem com todo o vício dos iniciantes. Repetindo as linhas das mulheres que eu amo, pois ainda não se atreveu a desatar-se. Nunca contei meus gostos, mas ela advinha. Nunca pedi rosbife, mas ela os cozinha para mim. Instala-se nos sonhos. Pelos cantos da casa. Como uma predadora caçando em silêncio. Que morte terá? É o que pergunto. Quantos anos ela levou arcando com a melhoria dos seus instintos? E agora anda tão perto. Tão colada à brisa que me arrepia a pele. Posso apenas devotar-lhe o medo. O mesmo que me levou às costas do mundo, ainda náufrago, ainda cedo demais para raízes. Ela me oprime, como as antigas leis da ditadura. E minha nação perde as posses e os limites e minha unidade se vai desfeita deitar-se em sua cama. Ao longe as areias do tempo comendo meus beijos, minha literatura e a única coisa que consigo desejar agora é esse fermento. Essa novidade potentíssima e disforme cujo nome não sei, mas que mora inegavelmente dentro dos olhos dela, um mundo ordinário e bento, com todos os melhores detalhes de um romance antigo. J.M.N.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Excertos Terapêuticos XXV

Le labyrinthe

J'erre au fond d'un savant et cruel labyrinthe...
Je n'ai pour mon salut qu'un douloureux orgueil.
Voici que vient la Nuit aux cheveux d'hyacinthe,
Et je m'égare au fond du cruel labyrinthe,
Ô Maîtresse qui fus ma ruine et mon deuil.

Mon amour hypocrite et ma haine cynique
Sont deux spectres qui vont, ivres de désespoir ;
Leurs lèvres ont ce pli que le rictus complique :
Mon amour hypocrite et ma haine cynique
Sont deux spectres damnés qui rôdent dans le soir.

J'erre au fond d'un savant et cruel labyrinthe,
Et mes pieds, las d'errer, s'éloignent de ton seuil.
Sur mon front brûle encor la fièvre mal éteinte...
Dans l'ambiguïté grise du Labyrinthe,
J'emporte mon remords, ma ruine et mon deuil...

Renée Vivien

Desuso

A palavra teto é desabrigo, não está. Tantas noites a evocar tua presença, amor, que a porta escancarada nunca mais vai se fechar.
Conforme o dano, utilizo a cura. Conforme o desejo, utilizo a pele, o beijo, os múltiplos sons que vêm de mim.
Da palavra amargo somente o sumo. Azedo no finzinho da boca. E essa história tão boa a causar desgosto por não ter sido.
Deixei de utilizar veneno.
Mordo a carne das tuas idéias e me esqueço. Como tem de ser. Deixei de usar também a calma, um sono tranqüilo.
E o que tenho é nada mais que esperança. Esse palíndromo de desespero. O uso me cansa. Meu uso faminto das tuas costas nuas e cheirando a banho, apenas um delírio.
Como Noel: não vou por gosto/ o destino é quem quer. E o meu destino deixou de usar a prudência há tantos anos que toda essa saudade que sinto, tem a mesma indecência sentida de uma traição de amor. J.M.N.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Frequentes

Espero, sinceramente, que a minha sazonalidade não te afete. Não te exaspere esse banzo de linhas e lenços. Não quero pra mim a dádiva da prodigalidade, mas o dom da freqüência. Te daria um gotejar intermitente de carinhos e pequenas melancolias. Te presentearia com escravos africanos pra guardar teus livros. Fiaria as nossas intermináveis pelejas da memória. Mesmo à distância, o cotidiano, construí-lo-ia em ouro invisível pra unir-nos numa liga qualquer. Foi dessa matéria o meu sonho depois daquela tarde em que me cobrastes, pela via da falta que te faço, que eu apareça todos os dias; que escreva sobre mim, fale e silencie, mas que esteja ali, ao teu lado, tentando uma completude que se busca e se quer. Mas que não se alcance. Se gostei dos teus poemas? Sim. Eles parecem aquelas janelas coloniais que se abrem pra paisagem. São de uma nudez quase cruel. Queria ter te falado logo isso, mas continuo tendo problema com os teus olhos. Com esse estranho poder que eles têm de me despir da filosofia e da experiência. Vamos, enrodilhando os dedos, passar de “não te deixarei sem jeito com meu olhar”? Pode ser que eu não veja os calos e as rugas perderem seu valor diante do teu primeiro bom dia e do teu último tchau.WDC

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Feroz

Ouço os passos do leão antigo a espreitar minha tenda no deserto. Ouço sua fome fatal respirada em arfante espera pela carne. Um meu desaviso bastaria para cair em suas garras
Ouço muito longe também o barulho das ondas imensas daquele mar de agosto, provendo a costa da pequena cidade com alimento e brisa. Tudo era tranqüilidade
E a janela sob a qual dormíamos era o espaço sideral em sonho compartilhado
Hoje tenho uma sede duradoura e doentia. Por sumos e poções que estão além desta existência. Que andam na memória. Nas bordas das fotografias
Nos olhos azuis que reclamam ultramar. Infante, infante, corre que o dia já vai morrer
Era o que me dizia a beleza dela em vestidos floridos, ora amarelo-sol, ora meu sangue que só ela tinha. Pararia a rotação terrestre se a visse entrar por esta porta, azaléias na mão direita e um convite à luta armada
Deixaria de esconder o rosto ao passar naquela rua, cuja única direção é para longe
E seu sorriso esculpi em pedras que não são daqui. Apenas para um beijo eterno, seu lábio pétreo por mim formado. Sem braços o busto feito, para não correr o risco de cair capturado. E a música me leva à aurora dos tempos. E sinto saudades do que ainda não vejo por ser um segredo que levo apenas comigo.

J.M.N.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Eu desistiria do fim

Às vezes sangra, às vezes sara, a tua ausência
Sempre tão viva que me dá nos nervos, e paraliso
Falo para sempre ao telefone e meu silêncio denuncia
Uma ânsia de desdizer tudo que disse, trazer para dentro
A tua tristeza como um gole de álcool em chamas
Um estrago, sabor difícil de entender se não nos damos

Cumpre dizer que estava errado, minha dama
Vale lembrar que não estávamos, mas o beijo
Esse condão que surrupiava nossa verdade, talvez mais a minha
Um rufião de abandono dos sentidos, gosto ultimado
Da saudade que sentiríamos, mais cedo ou mais tarde
E quão impressionantes foram nossos últimos beijos de amor

Tão ilhados e desmedidos que transeuntes
Das avenidas largas e sem passado de outras paixões
Nossos vultos iluminados tão somente de esperanças
Calados e cativos do que havíamos sido anteriormente
Catavam estrelas, perdidos na escuridão de uma noite
Indigna, sem olhos e mal cuidada, não era nosso melhor final

E se tudo me voltasse mesmo que em sonho, mais uma vez
Desistiria da liberdade e do vento de então
Para viver a eternidade em um beijo sem fronteiras
Do deserto arquivado no tempo de nossas almas juntas
O tempo próprio de me lembrar complemento
O futuro mesmo de alguém me ter presente em tudo. J.M.N.

Para ler escutando…

O que não deves mais fazer

Não caber no meu apreço. Não deves ser tão disponível aos meus versos
à janela a noite morre quando é teu rosto a iluminar memórias
Não deves mais aparecer em pensamento
Outra indecência a evitar é essa tua postura, teu ombro desnudo, tuas pernas dando passos desafiadores em minha direção
Como estar aterrado depois disso?
Não deves meter meus anos em tua bolsa e sair impune
Não deves abrir gaiolas e desejar que os pássaros voltem por onde vieram, as suas penas intocadas pelo mundo
à distância desejei que não houvesse existido nossa história, nossa terra
desejei não ter tido outra chance
Não deves mais falar apenas entre o pranto o que te dói
E eu, por certo, não devo mais esperar que entendas

J.M.N.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Descaminhos

Esquenta a comida que eu to chegando. Venho lento, pois o trânsito tá muito ruim. As esquinas de perto do trabalho são secas e quase não têm vida. Toda vez que saio fico espantado em perceber que a maior parte do tempo, vivo sentado numa caixa de gente estreita, num lugar desolado e sem vida, esperando dar o horário para sentir novamente o peso maravilhoso de esperar teu beijo.

A música tocando é aquela de sempre. Tem me acompanhado a semana toda. Diz lá pelo meio dos versos que a única chance de sobreviver a mim é encontrar teus olhos novamente. Eu canto, dedicando-a a todas as coisas desesperadas que me fizeste fazer. O que antes achava que fazia por ti, descobri, encantado, que fazia por mim. Eu sou o rei do desespero e não pretendo abrir mão do reino.

A rua de casa se abre. Umas pessoas de mãos dadas atravessando animadamente. Acho que hoje de tarde chove. Fico indo trabalhar mesmo de férias, dizendo a todos que o chefe não larga do meu pé. A verdade, porém, é que não encontro outra função a não ser produzir e esperar por nosso encontro.

A única coisa desagradável, no entanto, é que a casa continua vazia. J.M.N

Afônico

As palavras finalmente me substituíram. Acordei afônico. A voz cansada de dizer sozinha. Atraída para o nada de descanso atrás da pele do dia. Sentida apenas de não ter declarado amor, feito uma benção, sussurrado uma paixão violenta.

Minha voz amanheceu em outra instância. Sorrateira creditando mais segredos ao meu dentro. Aquilo que não sai de mim me endivida. E descobri que preciso dizer sempre, pois parece que a única ponte da alma ao dia é essa minha voz que amanheceu calada, introspectiva.

Não sai com esforço. Mesmo com as veias do rosto em pulsação extrema, todos os vasos do corpo querendo expulsá-la da garganta, atirá-la pela boca. Ela não sai. Tirou um tempo para me sacrificar as verdades, para me internar no conflito entre o que digo e o que sinto.

Minha voz sabotou a existência. E já nas primeiras horas do dia avisava que não teria piedade do meu peito, casulo das sílabas mais doídas e dos falsetes mais desafinados do que sinto. Minha voz se calou rebelde. Calou e espera que a reverberação do que não me sai por ela espante minha memória, alardeie minha consciência.

Sou um beco. Esperarei ansioso até a hora de poder usar com a boca à toda, a palavra silêncio.

J.M.N.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Equilíbrio

A esse amor que parece contraído, vírus novíssimo dos pântanos que exploro. Por onde me meto a procurar espécimes de plantas raras e fósseis de animais extintos. Com afinco e graça dos beijos morenos que me redimem pouco a pouco.

A esse intruso que me rói tudo por dentro, que me obedece quase nada e se vinga ao mínimo sinal de meu abandono, como se fosse o maior dos traídos e não o mais traiçoeiro dos amigos de infância a desfazer os pactos e os esclarecimentos.

A esse dono dos meus postais, sob cujo domínio extirpei libras inteiras de minha carne, certo de que não era nada, a não ser a carne oferecida em devota comunhão e loucura. Banquete para mim mesmo. Oferta ao deus enclausurado.

A este espetáculo que a tudo engloba e planifica. Que tudo suporta quanto roteiro e interpretação, minha reza. Minha lira. Meu mais agradecido sofrimento, pois emanar seus ares nesses tempos de obstinada solidão é ter no peito um espinho, é ter a dor mais feliz do mundo como sinal de se estar vivo. J.M.N.

Celebração (ou “bodas de aço e vinho”)

Para o grande amor

A festa teria de tudo. Uma canção escolhida para que eu entrasse em roupa de festa, gravata preta, muito elegante, cantando numa língua que ninguém mais entenderia a não ser ela.
Ela, por sua vez, simples e bela, com flores em uma das mãos e na outra um pequeno papel com votos de eternidade.
Todos voltariam os olhos para nos ver encontrados no meio do passadiço todo enfeitado.
O mundo inteiro estancaria diante do reconhecimento daquele brilho único, emanado por nós.
Com um ou mais detalhes era para ser assim. Um feito devotado de amor.
Em vez disso, o reconhecimento de que tudo acontece do jeito que tem de ser.
E a distância, esta dama coroada e trajando às vezes luto, às vezes veludo grená, é quem toma conta da festa agora.
Acabo de abrir uma garrafa de vinho.
A noite pesa como uma montanha inteira sobre meu peito.
Em cada gole desfaço um verso.
A cada encher da taça, uma lembrança ganha gosto, cor e cheiro. E bebo-a.
Sorvo anos engarrafados de vinhedos bem cultivados, como agora me encho da década de amor feita por nós, colhido com cuidado de antanho, alcóolatra.
Antes de o mundo acabar, antes do sol se tornar um precipício cósmico para nossas eras neste plano, entregarei a outra metade minha a que ela tem direito.
Mas antes, apenas esse brinde distante e sozinho, indo ao encontro não sei bem de quê, não sei bem aonde, pavimentando meus órgãos com uma saudade que não pode ser apenas minha. J.M.N.

A única trilha sonora possível…

Cadernos íntimos (Sobre plumas e noites secretas)

Sobre o magnífico Cardernos Íntimos, do Bob Menezes,
esperando que nos brinde com a publicação.

O acordo era chegar e desarrumar as malas. Mas ai, as coisas ao redor soaram mais fáceis. As roupas não valem de nada – fronteiras inúteis. Taças de champanhe e acolhimento. Cigarros à parte. Bilhetinhos carregados de dulcíssimas verdades. Uma fome que já vinha de antes. Depois os planos para o rapto das tais estrelas e a sede de encontrar as controvérsias nos olhos de quem passasse perto de nós. A única questão permitida: quem sabe? Como uma pergunta silenciosa que intimida e acoberta a insanidade de querer demais. E mesmo não sendo nossa casa faremos daqui um casulo de coisas e movimentos próprios. Forja de transformação intensa. Bateremos as asas feito crisálidas. Bem no cerne da agonia dos outros hóspedes, que para sempre perguntarão o que fizemos entre quatro paredes. E nós falaremos de ventres, teimosia, miudeza masculina. Falaremos de astecas e outras civilizações, enredos de ataque à carne, os lindos olhos do recepcionista do hotel. De repente o segredo do paladar que pedia, mas, perdido na euforia das luzes da cidade, queimou-se na intimidade do encontro de tantos anos. Beberemos gelo. Saberemos imediatamente que chegamos às fronteiras emancipáveis da entrega. Nossas mãos pausadas em sincronia. Saltaremos feito lobas, cortesãs sem agonia ou segredo. Os ventres expostos como relva lisinha vista de longe. Uma da outra, com milhagem de sobra para duas voltas na Terra. Nada de entraves, apenas liberdade. Quem sabe não foi esse o plano maior? Quem sabe não era disso que falavam nossas mães quando avisavam que íamos nos perder nesses devaneios. E desde sempre desobedecemos. Desde sempre sabíamos que não seria assim tão fácil pular fora. O primeiro olhar foi do motorista. Ele parecia esperar recato e conformidade, mas o que entregamos de volta foi a mais pura honestidade. Saímos sorrindo do carro. Entornadas da agonia que causamos. Nos olhares a escuta, nas mãos o cheiro doce, nos tons alentadores do sistema de som do quarto, o descompasso entre o jazz e nossas valentias. Ficaremos suspensas no ar. Venceremos escudos. E na destreza de nossa dança inconsciente, haveremos de nos revelar. Ao sabor de morangos e lingeries de seda. Sob as plumas encarceradas na mansidão do toque. J.M.N.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Cartas a ninguém (06.12.1944 – 6:23 a.m.)

Querida,

Escrevo dos campos de batalha. Chove e meu destino é tão menos meu do que era antes, quando andava a causar solidão e desavença. Escrevo depois que as bombas cortaram nossas linhas e o inimigo adianta-se em tornar tudo um único pastiche em tons de cinza e vermelho. Os escombros das casas se confundem com as sombras que árvores que já não existem e eu guardo a sensação crescente de tudo já passou por mim e que, ao fim e a o cabo estou morto, apenas esperando a hora de seguir viagem.

Mas não tenho um único tiro em mim. Nenhuma baioneta feriu minha carne. Nem estilhaços terminaram o serviço de impingir cicatrizes a mais. Estou como era, porém ouvindo tudo que se desfaz em meu redor. Sou o único de minha unidade que não tem um fuzil. Luto com a pena e registro as batalhas e as mortes em nanquim e sangue. Todos os poemas sobre a solidão já me consumiram e o que eu queria apenas era a comida que apenas as tuas mãos sabem fazer.

Acaba de passar um avião. Suprimentos de toda espécie. Os homens pulam de alegria e ao saírem de suas trincheiras, morrem por balas perdidas. Um deles tombou perto de mim, há pouco. Teve apenas tempo de dizer que sabia não estar morrendo em vão e me entregou a foto de sua esposa, acrescentando baixinho que era dela seu coração.

Fico pensando quem entregará uma destas cartas, caso seja eu a morrer de tiro ou bomba. Se isso acontecer saiba que a única dignidade que tive em vida se deu diante dos teus olhos aguados e castanhos durante nossa despedida e que tudo quanto mais quero para este mundo e para uma próxima vida é que estas linhas do front cheguem às tuas mãos, para que tenhas a certeza de que mesmo do outro lado do mundo, cheirando a morte e lama e pólvora, aquilo que mais queria era te ouvir dizer boa noite mais uma vez.

Este pensamento, querida, é o único que dá sossego e forças para continuar informando ao mundo sobre esta guerra, cuja declaração ajudei a forjar com minha insuficiente razão, mas que, caso me deixem os céus, ajudarei igualmente a acabar, sem disparar um único tiro, apenas contando suas histórias e deixando estas linhas de esperança e amor constantes, chegarem até tuas mãos.

Com amor,

J.Mattos

Trágica beleza

Todas as vezes que você me olhava não me via. Eu deserto, resmungando por dentro e devotando total amor ao suportar o peso do que trazias escondido no peito. Saias de casa sempre de noite e ao passar pela janela da frente já eras uma estranha. Tua imagem tão distante. Levei muito tempo para compreender que na verdade eras aquela que andava lá longe, no jardim escuro, rumo ignorado.

O longo inverno que me abatia quando não estavas. Uma engrenagem que me apanhava onde quer que eu fosse. A moça bonita que me doía. Que fazia melhor que tudo me mastigar. Não me servia. Não me exaltava. Reconfortada em tirar todos os mapas, toda história, todo passado. Um borrão perpétuo que exige a extinção dos outros para se sentir viva. Não podia mais. Nunca pude.

De tal ordem que ficou imperativo que eu voasse. Que me tornasse um pássaro. Selvagem em asas e caçador à luz do dia ou da noite. Ela não via. E tão rápido como passou a tomar conta de tudo, perdeu-se em seus próprios domínios. Incompetente para a dádiva, incompleta para ter tudo. Um conjunto perfeito de pernas, costas e tatuagem. O fracasso estampado no braço. Vencedora de nada. Perpétua falhada.

E antes que o domínio acontecesse demasiado, escapuli. Trago uma foto manchada. A lembrança do agasalho da noite. Notas de um tempo forjado. Trago a seqüela da beleza e da tragédia como um poema, nascido daquilo que tratado como belo, mas que apenas recende bem ao mundo depois da dor e da certeza da distância. J.M.N.

Para ler escutando…

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Pro teu bem

Pareceu muito até agora, mas provastes apenas um punhado da minha crueldade. Sei que aprecias algumas maldades matinais, como da última vez que te acordei, mas as garras que me cresceram desde ontem sei que vão dilacerar teu dentro e mostrar um avesso que escondes com vigor, como uma daquelas violências que cometemos nos quintais da infância.

Ontem, enroscada em penumbras e atenções estrangeiras, me roubastes um pouco do meu equilíbrio. Deves ter percebido que, de súbito, a rua me pareceu uma corda bamba, e eu nem sequer tinha um guarda-chuva pra amenizar a cena. Me recompus, e com a mesma pressa com que fui tirado do meu eixo. Veio-me uma lufada de contentamento, uma pequena felicidade. Este pequeno frêmito depois do assalto, explico, foi pelo simples fato de certificar-me que não sou o escolhido; que em volta de mim não há nenhum satélite ocupado em cumprir a sua órbita e que, assim, sou um homem livre.

Não tentes, no entanto, sorver os restos do meu veneno. Poupe-se. Não há porque procurar a dor se ela não te apetece. Juntemos os nossos silêncios e forjemos uma indiferença mútua. Eu já te amei com força e sei que, por seu turno, ainda me amas, mas esta é a hora em que o amor não vencerá a falta de desvelos e a proximidade de inevitáveis dissabores. Fique consigo mesma, os seus arredores já foram pra mim os lugares mais confortáveis e agora, pra ti, são os abrigos mais seguros. WDC

Cumpra-se

Aconteça. Mostre-se. Além das vilezas e das mensagens secretas. Diga o que dói. Diga que não há perdão. Apareça diante da porta e atire um vaso qualquer. Seja completa. Sem ocupar-se de um enigma que não está em ninguém mais a não ser dentro de si. Nenhum lugar, nenhum abraço, nenhuma aliança fará de você alguém completo. Encare o espelho. Vista-se de si e não queira destruir os vestidos de quem anda feliz, florida pelo novo amor que chega. Enxergue a quem se entrega. Cuide. Para além daquilo que não teve, pois tudo o que tens é muito mais do que para tantos. Tudo é metade. Nenhuma força se aplica sem reação. Amor demais é tristeza ganha em outros tempos, como uma garrafa cheia de substâncias que não deviam estar no mesmo frasco. Ninguém se faz sozinho. Ninguém destrói um amor de mãos tranqüilas. Quando abri os olhos para a esperança, infelizmente, nenhuma de tuas palavras atendia esse chamado. Nenhuma de tuas ações concernia em certezas de continuar vivo. Como sabes o que eu não posso dar? Jamais estiveste inteira em canto algum. Jamais participaste da tua vida como atriz principal. J.M.N.

Hasta luego

Antônio pensava como tantos: seria feliz. Comprara uma casa de três quartos e um carro do ano. Tinha um bom emprego e iria receber o título de cidadão exemplar de sua pequena província. Faltou à entrega do prêmio. No outro dia não compareceu ao trabalho. Passou uma semana e todos procuravam Antônio, sem encontrá-lo. Um mês. Dois meses. Um ano. Certo dia o pároco recebeu uma carta. Antônio estava na Letônia. Morava num campo de refugiados. Tinha contraído tifo. Trabalhava catorze horas por dia e não conseguia compreender tudo o que lhe gritava o patrão. Explicava também que a trapezista do circo que passara no vilarejo um ano antes, havia se encantado dele. E terminava dizendo sua maior convicção: sabia que seria feliz. Estava sendo. J.M.N.

O solo dos desabitados

O sol da tarde é um mar de calor e saudade que se imprime na pele. Esquenta por fora. Dá tento da estrutura nervosa que se implica apenas com a natureza externa. Ao lado, um calendário que conta histórias de antepassados amores e vilões no espelho. Dia após dia desassossegado destino, entorna-se. Os maiores inimigos são os que nunca dão as caras. Seres sem honra ou respeito pelo que é dos outros. Queria que a sombra da única árvore desse campo em que me encontro cobrisse toda minha solidão. Mas não há remédio. É sempre meio-dia nessas paragens. Enquanto a pele modifica, torna-se curtida, espero uma nuvem ou uma torrente de gelo inesperada. Meus passos poucos afundam no chão. A terra fechou seus poros e eu não tenho alternativa senão esperar que o tempo mude. J.M.N.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Micro-romance VI

Qual foi a chave, a escritura? Qual foi a carta que ficou manchada ou confusa? Tantas perguntas e o que me deixa pasmo é esse silêncio sobre as coisas inacabadas: o balcão da casa, penteadeira de nossas filhas, a aparição de um casulo na janela feliz de nossa terceira primavera.

As meninas que diriam mamãe e papai vezes sem fim. Chamaríamos família à conquista de muitos anos. Abrir o peito e dizer de uma vez o que aquece nossa alma conjunta. Às vezes chamo de Gildo aos amigos. Um nome incomum para bancar a criatura fugida de meu desespero. E quando os chamo assim, parte de mim fica melhor, mais humana.

E eles refilam, deixam de crer que ando normal. Mas, afinal, quem anda comumente esses dias? Tenho mais uma coisa para saber antes de acabar com isso...

De todas as piores coisas que eu fiz, qual foi aquela que perdoaste completamente?

Sei que houve, por isso pergunto. Talvez ao saber como se deu teu perdão, possa clinicar internamente meu próprio indulto para comigo. Costurar minhas escaras, reverter minha solidão e escrever mais linhas gentis àqueles que insistem em me chamar de maldito.

De qualquer maneira, tudo depende do que eu senti por ti um dia. J.M.N.

Voltas

Pronto, a noite terminou e eu nem sequer perguntei-lhe sobre a sua infância, seus hábitos ou mesmo, pela razão daquele gesto estranho.
Serei obrigado a andar com ela, em silêncio, por todo o doloroso caminho até sua casa, pensei.
Nessa hora divaguei sobre as coisas que realmente me importavam nela.
Não consegui outra resposta senão, tudo.
Qualquer pergunta estúpida poderia acabar com aquele silêncio desconcertante, mas preferi uma piadinha infame e...
Lá vai ela, linda, calada e, provavelmente me odiando ou me chamando de idiota em voz baixa. Eu mereço.
Ai ela parou e ajeitou o sapato nos pés, equilibrando-se com a perfeição que eu esperava ver de novo nos pequenos costumes que ela tem. Lembrei-me de correr. Segurei-a pela cintura e disse, calma!
No susto, a admiração pelo meu retorno.
- Obrigada! Eu...
Um beijo... Só um.
Foi isso.
Sem qualquer pieguice de meia-noite: quase morro.
Um único beijo e eu estava para sempre postado naquele pequeno espaço de noite. As pessoas passariam anos mais tarde e veriam minha imagem envelhecida e feliz, envolvida num beijo eterno.
No fim daquela eternidade em que estivemos, pedimos conselhos silenciosos e acho que, ao mesmo tempo, decidimos nos deixar.
A primeira coisa que vi hoje de manhã, foi seu rosto ao meu lado.
Qualquer coisa quente e estranha me acometeu. Desviei meus olhos e procurei qualquer coisa que me dissesse que eu estava certo.
Sim, eu estava. Ela dormiu comigo.
Aliás, há dez anos que isso acontece.
Desde aquela noite aprendi a correr de volta. Socorrer um amor é coisa difícil.
Além do beijo, muitos segredos e devaneios.
Eu continuo acordando ao seu lado e acordo sempre com a precisa certeza de que fiz a coisa certa. Corri de volta e lhe beijei. O resto, pode ser qualquer outra coisa que não cabe aqui nessas linhas. J.M.N.