terça-feira, 25 de maio de 2010

A história de Frederica (ou “Errante”)

Trazemos dentro de nós sentinelas perdidas
Que devem gritar sempre e muito forte: alerta!
Porém, que vão passando a vida adormecidas,
Deixando a porta da alma inteiramente aberta!

Lima Barreto

Passou o primeiro correndo. Com fúria e vento nos pés. Passou correndo para dentro da Vila, anunciando o que eu ainda não conseguia distinguir. Minha janela aberta ainda estava vazia. Passou o segundo dizendo gritos e entrelinhas como um gaiteiro, malfadado em sua corrida, abancou-se desmaiado no tabuleiro de frutas da feira. Minha janela ainda não tinha me dito nada. Passou um pelotão inteiro. Sólido bloco de perdidos. Pernas curtas e maciças como aríetes. Forçavam o chão das ruas estourando os seixos como alfenim. A tarde foi reduzida a poeira desesperada. Minha terra fora apanhada de surpresa. Passaram por muitos minutos em frente de casa. E pareciam ter perdido o compasso da marcha e cantavam canções não de guerra, mas aquelas que cabem bem dentro do som dos maracás, das festas de taberna. E eu lembrei que minha mãe fazia este som para me acalmar em criança. Enquanto todos deslizavam de suas calmas para o poço sem fim das inconformidades, eu ia ficando tranqüilo. Minha janela engoliu toda poeira. No meio da tarde, vinte e sete de outubro de um ano qualquer, meus olhos tomaram o rumo coral do poente e deitaram nela. Vinda, não sei de que lugar do páramo. Não sei de que instância divina. Ela andava em outro ritmo. Mais humana do que os que eu já havia conhecido. Era como a forma mesma da perfeição do mundo. Aquilo que se irradia por mais cristais que a luz límpida de depois da chuva. Minha janela tremeu-se inteira. Soltou urros convocando minha presença. Saltei para a imagem que se conformou diante de mim e não sabia o que fazer dali em diante. Ultrapassei os limites de casa. Pisei nas marcas da marcha trêmula dos homens do batalhão. Reconheci o médico estatelado na feira e o primeiro que passou correndo ainda por volta do horizonte da Vila. Suas palavras, empurradas para trás, disseram finalmente a entender – ela está vindo. Um cheiro morno e muito intenso aconteceu. Um visgo âmbar de minha pele desprendia. Era ela fazendo circunstâncias em minha biologia. Quanto mais cheirava, mais impedia a razão de vir. Mais domesticado em seu rumo eu ia. Até que nos confins da rua oito, perto do final da Vila houve um grito. Apenas um. Era meu nome. Não o último, nem o do meio. Meu nome inteiro. Aquele de minha carta de cidadania. Veio ao revés do vento. Duro e reto com precisão sentida. E não eu vi até onde estava indo, mas onde havia chegado. E vi aquele ser que se estampara em minha janela momentos antes. Era a imagem mais feminina que já vira. Era o mais que eu queria em meu olhar. Porém o nome. Meu nome no desespero da tarde. A Vila levou um tempo para recobrar-se. Alguns se perderam pelo caminho, atravessando a mata espessa que nos isolava naquele fim de mundo. Eu voltei para casa. Amando e recriando sentidos. Circundado nos limites da cidade, porém pássaro para além dos horizontes. Certo de que este sentimento me faria estendido e inusitado, disposto a enxergar sua presença onde quer que minhas linhas viessem dar. J.M.N.

Um comentário:

Anônimo disse...

Mais uma vez você surpreende. Literatura da melhor qualidade. Diferente do que tava surgindo antes.

Mto bom.

Cláudia