sábado, 5 de dezembro de 2009

Refazendo

Hoje ele cuida mais de si. Jamais sai de casa sem olhar pela janela e sentir a correria de fora. Confirma que já não é a mesma de seu dentro. Chama-lhe atenção o que os outros dizem e fazem nas esquinas por todo canto da cidade. Os homens nos canteiros de obras. As obras mesmas a redesenhar a cidade. Cachorros ladrando para a chuva insistente. Novos olhos nos lugares que costuma freqüentar. A leitura continua aflita e insistente e a pena trabalha em dobro, sem buscar realizar-se. Deita-se por ai, em colos emprestados. Ninhos momentâneos para aquelas coisas que acontecem apenas uma vez ou duas. Assim seja. Ainda sente pena de não ter dito certos segredos. De não ter usado a circunstância para aprender a lidar com suas impossibilidades. Mas já sabe se perdoar. Em todo ato um cuidado. Em toda escuta uma gaivota e a casca da lua em alba contingência a descortinar os caminhos da noite. Miriápodes se aproximam. Faz poesia nos confins da terra fazendo-a respirar. Come os suplementos de alma desconhecidos e finge. Finge ser o que já foi. Coloca-se no lugar daquele que se foi e que sorria mais, entregava mais e se banhava livremente no amor de outrem. Hoje se entristece por um dia e engendra outro para compor uma sinfonia de imprecisos equilíbrios. Sempre mutável. Não precisa de tantas certezas, nem pretende saber de tudo. Desta criança o tempo cuida com mãos de pano e travesseiros. Usa o verbo como uma vulva ou uma oração. Comunica-se engravidando a si mesmo com a voz. Arranha a ostra das pessoas. Têm inclinação para esfínges derrotadas, as suas vontades mais terríveis. E só pelo tato esse homem descobre se as tais fantasias são desejáveis. J.M.N

3 comentários:

Wagner Dias Caldeira disse...

Esses são movimentos de uma dança tão dolorida quanto necessária. Que talvez ofenda um corpo tão acostumado à retidão. É preciso perdão mesmo. Primeiro de quem se ama e depois, ao descobrir-se nesse amor, perdão de si mesmo. Pra que a escrita salve é preciso cercar-se dos grandes escritores e, pra quem pode, ter um como irmão.

Teu texto me causou um dor fina atrás do coração, quase um frêmito, quase um contentamento.

Anônimo disse...

És de facto um grande escritor. Estou a admirar-me desta tua faceta, a qual não mostraste para a malta do mestrado. Todos estão a comentar teus escritos e a dizer que têm saudades do brasileiro falador da sociologia.
Por cá tudo como dantes. O CES a dar trabalho. Doutoramento pro ano que vem e vai-se a viver.
Congratulo-te mais uma vez pelos escritos.

Um grade beijo,

Ana Vasques
Aveiro

José Mattos disse...

Oi Ana,

Que bom que nos reencontramos por estes mares virtuais. Não imaginas a saudade que tenho daquele tempo e da malta toda.

Espero em breve poder reunir com vocês e passar um almoço agradável na tasca do trinca espinhas perto da FEUC.

Um grande e saudoso abraço,

J.Mattos