quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Micro-romance III

“Não consigo dormir.
Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras.
Se pudesse, diria a ela que fosse embora;
mas tenho uma mulher atravessada na garganta.”

A noite - Eduardo Galeano

Tinha em suas mãos nada menos que todos os ímpetos dele. Modelava-o feito balata. E feito um guache colorido se usava dele para pintar seu dia. Tinha fuga e desamparo o sorriso dela. E certezas, à guisa de planos e festins. Era uma pessoa destinada a ser amada até as últimas conseqüências. De maneira inconseqüente, idem.

Pela primeira vez tinha tanto que não cabia. Não se coube, afinal. Hoje é sabido. Pela primeira vez tinha votos de eternidade sentidos no mais fundo céu de suas ilusões. Não se permitia saber-se adorada. Tinha um império a dois nos braços dele, nas palavras mudas que saíam respiradas quando ele velava seu sono.

Ela ficava desajeitada quando ele tentava dormir em meio a seus pesadelos. O agrado sonolento que lhe dava não era suficiente para acalmar seu medo de perdê-lo, de perder-se. Sentia-se secretamente perdida – avião sem sonar.

Saia todo dia a trabalhar e ligava uma, cinco, vinte vezes para confirmar se ele ainda estaria à sua espera ao fim do dia. Interpretou tantas tragédias e sátiras e outros teatros, tantos cordéis e ventriloquismos que cedeu à surpresa de ser amada tanto. De encontrar-se em meio ao romance eterno que era a vida dele, sem medidas finais para dar-se e esperar cada vez mais.

Tudo, tão intensamente, que não compreendia.

Tão devotadamente que seus limites libertários e instintivos desnutriram-se e a fome passou a ser por descobrir-se, convocar-se novamente a um poder de azeviche. Ela enterrou suas chances na mesma terra prometida dos punidos, com aléias para campos de girassol e barrancos para infernos magistrais. J.M.N.

4 comentários:

Anônimo disse...

Impressionante a tua capacidade de expressar tantas coisas que pensamos e não conseguimos dizer.
Esse texto é uma das perols do teu espaço.

beijo,

Re.

Unknown disse...

Impressionante a tua capacidade de expressar tantas coisas que pensamos e não conseguimos dizer.
Esse texto é uma das perols do teu espaço.

beijo,

Re.

Unknown disse...

Ops,

Postei um comentário anônimo... mas sou eu tá? kkk

Bjoka.

R.

Anônimo disse...

Esse texto é magistral. Parabéns!

Michele