A noite não termina. As notícias do jornal do dia transformam-se em miudezas: aquele assassinato terrível; um menino na rua que pede colo, alento; pessoas morrendo de fome em algum lugar da África Setentrional; acordos políticos que levam o país à lama. Nada está em seu lugar. E, ainda por cima, o sabor dos alimentos causando náuseas, pedículos de desgosto tachando a língua de caminho, via aberta ao interior que dói imenso.
É quando se acostuma a falar adeus. A negar-se. Quando toda a pressa é pela próxima hora de claridade e sentir na pele que tudo não passou de um sonho ruim. Ninguém mais entende. O telefone não toca. Não há palavra suposta que possa amainar a tempestade que apenas cresce dentro da gente. Nem Deus, nem o Diabo. Cantos, sagrações ou espetáculos. Nada faz sentir menos pior.
O encontro desse momento é com a imagem. É com a dúzia de boas lembranças que acordam junto com todo escuro daquele estado. Um filho que toca guitarra e se inaugura homem. A Torre de Belém que ainda resiste ao tempo e às nossas falhas. Um amigo que liga distante e diz que sua falta é maior que tudo. Uma rosa tatuada nos braços esquecidos recentemente. Pão rasgado com suco. E mão benta que tirava mau-olhado com sussurros de reza secreta. Uma espécie de forma para amuletos perenes e desejáveis.
É quando a poeira senta. O dia vem. O riso tímido acrescenta músculos esquecidos na face. Na língua nasce um doce em lembrança de amor. A tortura dos órgãos de dentro é apenas a espera do alimento matinal. E a gente senta refazendo as escalas da fuga de trás pra frente, até chegar ao ponto que nos fez querer ir embora para sempre. De repente um pensamento imediatamente maior que nosso próprio medo: faz sentido lembrar isso tudo. Faz sentido, simplesmente. E a gente, num passo curto, inicia novamente o caminho de buscar-se, dia após dia. Eternamente. J.M.N.
Um comentário:
que texto mais lindo! Adorei...
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