domingo, 19 de setembro de 2010

Micro-romance II

Sentava de um jeito próprio. Arrumava o corpo delicadamente depois de já pousada na cadeira. Era disso que eu mais me enchia nos momentos em que ficava apenas observando sua existência. Momentos assim antes de perder a cabeça, antes de espantar a suavidade e tornar-se uma pessoa realmente desagradável. Era assim que eu a via. Era também assim, com dívidas e dividendos que eu a amava surdamente.

Estava sentada do mesmo jeito seguro e fixo daqueles dias, porém sua metáfora corpórea era desajeitada. Senti naquele instante que estive nela tanto quanto ela esteve em mim. E ainda que por cima de tantos desastres, soubemos, um de cada lado, que havia miasmas e filigranas juntando nossas vidas. Eternidades em fios finíssimos no meio dos olhares apagados e sozinhos que nos prestavam homenagnes irreconhecíveis.

Vi que se queria vingança entre os seus. Que um estava pronto para matar e morrer por ela. Assim fora sempre. Mas me detive em amá-la quieto. Odiando sua passagem por minha vida. Amando ter conquistado o que ela me oferecera e, definitivamente, respirando um ar livre de qualquer tormento ou insígnia espúria – um ex-amor validado e fundo.

Depois que a tarde caiu pesada sobre meu corpo, a única imagem que advinha das náuseas mais secas e dilacerantes de minha solidão sem fim, era sua imagem. Seu busto urticante e franzino despedindo-se da razão como a qual eu decidira me reconciliar no exato momento de nosso fim.

E vi que não lhe cavei sepultura, que não houve cinzas espalhadas pelo vento de minha imaginação. Curiosamente, ela foi a primeira que mostrou se poder continuar com a vida sem matar lembranças ou despedaçar objetos deixados pela casa. Ela foi a primeira que me mostrou ser o amor um romance de mil personagens malditos, de mil soluções e enredos, como é a vida para aqueles personagens que dispensam seus criadores. J.M.N.

4 comentários:

Anônimo disse...

Fazia tempo que não lia algo assim!Que expressividade.Gostei, parece um conto, não fosse a transmissão de um realismo a flor da pele.
A vida nem sempre permite nos revelar quem realmente somos ou mesmo não queremos, e ainda o encontro com o que nos completa nem sempre ocorre de forma harmoniosa, mesmo pelo medo da aceitação ou da entrega.
Para alguns é melhor negar do que se entregar por que parece que é uma forma de derrota,então viver as eras solitário é uma opção.
E ainda, penso que devemos viver mesmo com tantas angústias e dificuldades que a vida nos apresenta de forma feliz, dando uma certa leveza a alma.

...
Anônimo.

Anônimo disse...

"a realidade toda e o meu romance... Minhas palavras sao nascidas entre o que desejo e o que aconteceu em meus silencios"

Anônimo disse...

" A linguagem universal de todos os termos, conceitos, fundamentos é o amor sem ele nada somos e, nos tornamos incapazes de reconhecer qualquer sentido mais amplo de significados que nos sejam sublinares"

Arê disse...

A memória daquele que ama guarda certas cenas do outro amado feito relíquias raras. Nela, é como se tais imagens não fossem simples banalidades corriqueiras, cotidianas. É o caso de um gesto, de um modo de sorrir ou – como no caso de nosso herói – de uma forma de sentar. O corpo do amado é um objeto repleto de ornamentos. Vale a pena observá-lo porque ele é a prova tangível dessa sublime existência. É o exercício de contemplação a que se entregam aqueles que amam, no ritmo tácito e imperturbável que estabelecem com o amado. Fora desse diapasão, a mesma cena, o mesmo gesto, tudo perde sua aura mágica. Torna-se uma “metáfora corpórea desajeitada”. Mas se a partida do outro amado não implica “sua sepultura, suas cinzas espalhadas” é porque a memória amante ainda é um delicado relicário, onde a figura do amado ainda exige reverências e atrai certo êxtase devotado. Sim, na memória daquele que ama jaz toda a estética da ausente figura amada.