quinta-feira, 1 de outubro de 2009

A Ira do Adeus

Sobre a música Say Something, James

Ouvi cada palavra tua calado. Adentrado num mar inóspito de irreconciliáveis diferenças, de escusas intempestivas e palavras pouco consagradas, em desuso até. Foste recolhendo teus pertences, teus gritos, a terça parte de tua estrutura. Envolveste em teus braços longos e quase abrigos, os resquícios do que tinhas trazido para a casa, para o quarto de dormir. Exumaste as memórias ternas e vorazes dos quatro cantos da sala. E um cheiro de desistência e armadilha entrou solene e seguro pelos corredores. Era injusto que eu me sentisse traído, pouco desejado. Era impróprio que eu cultivasse o tormento de tua partida. Devia ter deixado o centro das incertezas para ti. De um golpe violentaste minha memória, destruíste a imagem que tanto lutara para erguer e manter aos que amei, em casa que um dia foi minha. Caminhaste dura e intransigente por sobre as ruas de minha infância entregue, de meus dias de abandono e escravidão e acertaste em alvos que nem sequer conheceste. Foste ora carrasco, ora quem liberta. A porta fechada encontrou um tempo para me conceder a lembrança de quando te deixava sair, sabendo que voltarias com a alma em carne viva para me habitar. Um raio de sol fez questão de iluminar o objeto que esqueceste. E aquela luz, como um fixador natural, gravou na lajota da sala, a imagem de teu broche deitado no frio. Uma sombra de azul indolente que se recusa a sair. Como se recusam a sair de mim as imagens felizes daqueles dias. Lembras da represa que nos recebeu em nossa primeira viagem? Lembra de como as pessoas perguntaram por que rias tanto e ao me ver chegar todos se encontravam num riso junto, reconhecedor? Eu gritava com toda a força que se isso durasse mais que os anos que dizias estarem palejados para ti, queria morrer primeiro, para te deixar ver como era a vida sem mim – um egoísmo delirante e inconformado. Teu silêncio é ensurdecedor. Dizia nas rezas secretas que faria de tudo para sempre encontrar razão de te perdoar, quando, no fim, não estava pronto para me conceder o perdão devido. E quando aconteceu de seguires um rumo diferente do meu, senti muitíssimo que tivesses partindo de maneira tão desumana, tão cheia de por quês. Perguntando se não era suficiente o que me entregaste na chegada, enquanto eu, sentado de costas para a porta agora eternamente fechada, me perguntava se havia esquecido de te dizer alguma coisa, de te devolver tudo o que era teu por direito: tuas roupas, tua escova de dente, teu colar de contas e a parte de mim que nunca mais aprendeu a existir sem a tua presença. J.M.N

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2 comentários:

Anônimo disse...

Quando li estas linnas e escutei a música fiquei com a garganta seca e os olhos em lágimas,vivi uma história dessas recentemente...E existe mesmo uma perte de nós que não consegue existir sem a presença do outro.
como dizia Alexander Smith"Amor não é nada mais que a descoberta de nós ns outros,e o prazer deste reconhecimento".
O sábio Salomão já dizia em seus versos de Cantares"...o amor é forte como a morte e duro como a seputura é o ciúme"...é um sentimento de pertencer...

José Mattos disse...

"se existe o pertencimento, se tudo ainda é grande como um infinito que cabe no peito, há de estacionar nos olhos e no calor das principais saudades do dia, a lembrança deste pedaço que se encontra disfarçado na carne de um outro ser, que bem podia estar no espelho enquanto nos aprontamos para sair".

O livro das distâncias - Cantídio

Teu comentário ensejou isto.

J.Mattos