quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Quando esta mesa está posta

Quando esta mesa está posta, pela dança da fumaça acima da panela de arroz, medimos o tamanho da espera. O número de pratos nos diz que teremos agregados e vizinhos. Não há lugares marcados, mas o lugar escolhido sempre denuncia o nosso humor para os presentes. A cabeceira pros mais contentes. Os lugares improvisados em pontinhas da mesa para aqueles que a vida não está sendo tão generosa. Com o tempo, todos saem falando roxo a língua de açaí.

Quando esta mesa está posta, logo a matriarca entra, vinda direto do marulho do rio, ostentando o sorriso como um brinco de jade. Entra, uma outra mulher, transformada pelas cantigas noturnas dos netos. Entra uma nova mulher, invertida pelo tempo, filha dos próprios netos.

O pai também chega. Recusamo-nos à ofensa de sogro ou tio. Ele não merece. O lugar que todos guardaram pra ele é aquele canto reservado aos pais e às pessoas vitais. Suas compras exageradas, sua calma exagerada, vestígios do exagero de amor que mora naquele peito cheio lugares confortáveis. Quando a mesa está posta, ele logo julga que a comida está daqui, e puxa o mole da orelha num gesto perdido no tempo. As agrugras de Juca Medalha no som, os braços abraçando o próprio corpo numa dança solitária, os olhos fechados e um sorriso de quem um dia fez dos bailes a própria vida.

Quando esta mesa está posta, o complexo arranjo de sofrimento e culpa se contrai e se desfaz na barriga do vento que logo mais embalará a sesta de todos. Quando do peixe sobrar a espinha, quando do feijão sobrar a saudade, quando do arroz sobrar a solidão do fundo da panela, quando da carne sobrar o cheiro, quando do macarrão sobrar a curva; o mundo estará satisfeito consigo, nosso crimes perdoados e nossos filhos sossegados. A vida, desobrigada da busca de um sentido, será então vivida com seus doces e seus amargos. A vida, todos a sorveremos com fome e coragem. WDC

Um comentário:

José Mattos disse...

Esta tua mesa é igual a que não tive, pois todos, muito silenciosos, arrumavam as vidas sem parecer nelas estarem. Uns autômatos obstinados por ausências.

Esta tua mesa é a mesma que tanto desejei em silêncio. Os anos se acomodaram nos pratos vazios, nos sucos sorvidos em segredo. Minhas melhores memórias dobradas tais os guardanapos de linho de Fortaleza, presentes de uma das tias.

Esta algaravia congênita e miudíssima que me contrai a alma quando a leio, lembra aquela que tinha docemente nos ouvidos quando era deixado na casa dela. Os fins de semanas infinitos onde eu reinava o reino do quintal, com ribanceiras para formigas, cascatas para gafanhotos e selvas para minhas tristezas.

Esta tua mesa posta a reconheço. Acontece toda vez que me abres as portas da tua casa. Que me deixas sentar em teu lugar de raiva. Vejo-a todas as vezes que tua filha me convida para dividir o sono ao pé de sua cama, quando tua mulher me apronta a cama para o cansaço do dia.

Esta tua mesa posta é tudo quanto partilhamos os dois. Humílimos e certos de que tudo ao redor merece mais risos que nossos feitos, merecem mais colo que nossas solidões. E essa fome, igualmente corajosa e voraz, tenho o prazer de divir contigo. J.M.N.