“A memória guardará o que valer a pena.
A memória sabe de mim mais que eu;
e ela não perde o que merece ser salvo.”
Eduardo Galeano
Os sinos tocam. Lá fora o barulho das felicidades caminhantes dos namorados, das famílias em festa que, com suas janelas abertas, assopram o calor das festas para fora de suas moradas. Na cave da casa, em seu quarto escuro, ele sente a ausência de todos, os sons como que sugados para os confins do pensamento das pedras da calçada. A casa antiga com tantos fantasmas dormia sossegada. Ele não. O convite para ir a Lisboa nunca aconteceu. Teria de ficar. Sozinho com suas garrafas de vinho a cumprimentar os reis magos, escrever cartas de amor e cartões postais para aqueles que estavam longe. Havia, porém, um único pensamento salvador. Era uma imagem conformada em tantas noites de frio constante, de estudos exaustivos, de saudades excruciantes. Era a imagem dela chegando naquelas terras do outro lado. Vinda cheia de abraços e cheiros inconfundíveis. Era uma imagem que se prendia às ruas por onde ele passava todos os dias, anexava-se nos cantos das casas que escolhera para morarem juntos e viver futuramente. Uma imagem de desejo e convicção. Estariam finalmente dentro de um mesmo plano. Atados a um destino. Era a melhor imagem que podia ter. Uma imagem de amparo e eternidades. Apenas uma imagem. Ela foi e voltou sem atracar-se. Levando o mapa das terras recém descobertas. Ela voltou e com ela a respiração plana das tardes lindas de Coimbra, as ruas perdendo o sentido dia após dia. Ninguém jamais soube daquele natal em que o mundo parecia outra dimensão e ele padeceu de esquecimento e frio. Algumas vezes o cheiro avassalador de quarto vazio embota-lhe a vontade de permanecer. Algumas vezes pensa que foi a melhor espera de sua vida. Ainda hoje, tem a impressão de jamais ter saído daquele quarto e quando esse desespero se achega, como antes, é a imagem dela saindo dos paramos da memória que vem renovada e eterna lhe causar a vida que necessita para mais um dia sobre a Terra. J.M.N.
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