segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Micro-romance VII

O corpo estava pronto. O melhor terno escolhido, a melhor gravata.
Um cheiro leve de sândalo exalava daquela figura morta cujo rosto todos os presentes não esqueceriam nunca. Depois a banda municipal fez sua parte. Uma salva de tiros até.
A esposa não descerrou nenhum véu, jamais se viu uma lágrima vinda de seus belos olhos cinza. A tarde exalava bronze e sabia a finalmente, com uma chuvinha fina deitando o cheiro de terra sobre todas as orações do velório.
Enquanto muitos esperavam ansiosos, a descida do caixão para deixar o homem ser comido pelos vermes em paz, apenas aquela mulher de vestido verde, completamente inadequado aos humores do féretro, demonstrava não querer que aquilo acontecesse. Um choro profundo e doído rolando de seu rosto maltratado, mas belo. Escondia-se atrás de uma árvore.
Foi o filho mais velho que partiu para cima dela, tentando expulsá-la do cemitério. A mãe o trouxe num abraço e sussurrou algo em seu ouvido, o filho despencou da raiva, olhou para trás e abanou a cabeça em sinal de aceitação. Todos lá, olhando a cena.
Depois do caixão baixado e tantas flores por sobre o homem que ali acabara a mãe foi em direção à mulher. Ela relutou, mas, por fim, cedeu e acompanhou a senhora envolvida num semi-abraço de amparo. A cabeça baixa, a postura de quem deve alguma coisa. A mãe disse-lhe as últimas palavras e ela ficou sozinha um minuto em frente à cova aberta.
Como não levara flores, ajoelhou-se e apanhou um punhado de terra. Entoando o Santo Anjo, atirou a terra sobre o caixão, levantou-se, agradeceu à mãe com um maneio de cabeça e seguiu em frente. Tudo acabado.
Fiquei ainda um longo momento olhando e pensando no que presenciara. O destino tem suas mais próprias formas de se pronunciar quanto aos seus enganos recentes, foi o que concluí.
Foi então que a mãe veio fazer seu último gesto.
Aproximou-se da sepultura já pronta, com lápide, epitáfio e tudo, e escarrou.
Não havia fúria, nojo ou vestígios de impropérios em seu ato.
Não me causou náusea aquele gesto, mais antes, uma certeza, era a demonstração do que não haveria de ser revelado jamais.
Talvez fosse o expurgo da memória mais íntima de dor. Quem sabe um naco de sua alma machucada que encontrou uma porta de escape.
Quem sabe, afinal, a dor em si, o medo imperioso e avassalador de estar livre para ser quem ela jamais havia sido. J.M.N.

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