quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Ao meu semelhante, uma noite.

Pro Zeca

A precisão do convite residia na simplicidade desconcertante de sua natureza: Vocês querem saber o que é o amor? Talvez as minhas amigas não estivessem prontas pra ver que esse sentimento tão desesperadamente buscado pudesse estar tão perto, à distância de um telefonema que atravessa a madrugada. Eu sabia que estavas acordado e onde estavas. Conheço teus itinerários, tanto quanto conheces os meus. Isso sempre me exasperou, saber que quanto mais eu tentei ser único, mais me parecia contigo. Quanto mais deixava o meu cabelo crescer, mais os meus pensamentos eram os teus. Quanto mais coloridos eram os meus sapatos, mais os meus caminhos eram os teus. Quanto mais usava camisetas, mais o que preenchia o meu peito era o que preenchia o teu. Cheguei no boteco como um náufrago que vê estrelas. Em volta de ti, todo o contexto noturno que transforma qualquer ocasião em uma reprodução de nossa velha e confortável casa: a mulher que te aceitou com todas as tuas consequências, os amigos que recusastes a abandonar, os novos, e mais uma dessas figuras hilárias que parece que tiras de filmes dos irmãos Cohen. Aportei naquela mesa enfeitada de cervejas e histórias, e foi como se eu estivesse chegado naquele nosso quarto pendurado no alto de casa. Seguro e arejado. Leve, como se sustentado pelo ar. Fazias o de costume, contavas, com a cara mais séria, umas histórias absurdas. Esse realismo fantástico, passado de papai pra ti e ti pros outros seis filhos, foi a herança que cada um vive ao seu modo: tu pra aproximar, eu pra escrever, outro pra amar, outro ainda pra ser amado, um pra se encontrar, outro pra se perder. No entanto, nenhum escapou do veneno da ficção imiscuído em nosso sangue pelo vovô Alcides. Era uma noite pra se lembrar dos testamentos de vida. O cinto, que pra gente tinha uma função moral quando estava na cintura e um objetivo pedagógico quando era tirado dela, nunca tivestes que usá-lo pra nos remeter à retidão que sempre pregastes. A tua coleção de biografias com capa dura e letra dourada, da qual escolhi a de Winstom Churchill pra ser o meu primeiro livro, aos nove anos. Nem precisa dizer que não entendi patavinas e que cheguei à conclusão que ser igual a ti iria dar muito trabalho. Os livros. Deixaste-os pra gente depois da tua grande viagem. Lembro que tive um ataque de fúria quando soube que deixarias a nossa casa pra sempre. Te persegui pela casa inteira. Te odiei aquele dia, mimado que eu era por ti e pelos demais. Essas recordações vinham acompanhadas de uma felicidade tão indisfarçável quanto o orgulho que sentes de mim, mesmo que não precises falar isso. Sei-o quando ligas pras tuas filhas pra dizer-lhes de minha presença naquela noite, sei-o quando falas do meu blog pros teus amigos, sei-o quando perguntas de minhas últimas descobertas. Com jazz, foi assim que terminou essa noite gloriosa cujo relato levou às lágrimas o nosso mais novo irmão. Faltou alguma coisa? Faltou a Michele cantar I’ve Got You Under My Skin, de Cole Porter. Seria perfeito mesmo, abaixo de peles tão diferentes, duas criaturas portadoras de semelhanças tão inapeláveis que chegamos a acreditar que não há linearidade no tempo, e que o amor também é feito de retornos.WDC

7 comentários:

José Mattos disse...

Como alguém que engatinha. Que aprende caminhos pelo tato de mãos inexperientes é que chego. E com muitíssimo orgulho me reconheço nessas linhas inundadas dos sentimentos que, enfim, nos aproximaram. É justo dizer que sou ainda um aprendiz desse tipo de partilha. Que não sei ao certo se caberei na enormidade das coisas que sei existem entre vocês e os seus. Ao ler estas linhas hoje, sinto que eu estava onde devia estar naquela noite. E daqui deste novo lugar que me deste, rogarei a oportunidade de estar um dia derramado entre estas tantas alegrias e retornos.

Teu irmão,

J.Mattos

Mel disse...

Não quero sair como uma completa emotiva nesse comentário, mas é impossível não dizer que lagrimei horrores ao lê-lo. Mais uma vez a admiração cresce em tê-lo como meu tio...
Gostei muito da parte: "Esse realismo fantástico, passado de papai pra ti e ti pros outros seis filhos, foi a herança que cada um vive ao seu modo: tu pra aproximar, eu pra escrever, outro pra amar, outro ainda pra ser amado, um pra se encontrar, outro pra se perder."

Fiquei tentando encaixar os filhos em cada descrição...adorei!

beijoss da sua sobrinha-aluna!!

Melina Pinto

Anônimo disse...

Netinho, Só discordo quanto ao teu lugar naquela noite. Deverias estar lá com os que agora são mais que teus.

WDC

Anônimo disse...

Melina, preciso começar a parar de usar diminutivos quando falo de tua beleza e o encanto da tua presença. Já és uma mulher, afinal, e esse tio mal percebeu. Acredito que fostes também uma feliz herdeira de todas essas insignificâncias que nos une a todos.WDC

Zeca disse...

Sonhei contigo, meu irmão.
Muitos falam que as drogas potencializam as emoções. A cocaína, a maconha, heroína, etc... no meu caso, a Brahma.
Sexta à noite, muitos de nós reunidos, quase todos me perguntavam se eu havia lido o post que escreveste aqui neste espaço.
5, 6 da manhã, depois de ter cumprido quase toda a maratona própria de uma sexta, curioso, lí. Confesso que além de muitos outros defeitos também sou invejoso.
Gostaria imensamente de saber olhar cada milésimo de segundo e tirar deles as coisa mais escondidas, mais ínfimas e transformá-las em emoção como fazes com maestria.
No sábado, pela manhã, considerei que há de se fazer justiça com a Brahma e tirá-la daquela lista lá em cima.
Sóbrio, me emocionei muito, muito mais ainda por lembrares tantos detalhes perdidos no passado, especialmente “Lembro que tive um ataque de fúria quando soube que deixarias a nossa casa pra sempre. Te persegui pela casa inteira. Te odiei aquele dia, mimado que eu era por ti e pelos demais.”. Sonhei com isso, sofri com isso. Me perdoa, meu irmão. Talvez hoje, com a cabeça um pouquinho mais no lugar, inconscientemente eu tente recuperar certos elos de minha vida que perdi.
Certamente que da próxima vez, outra noite como aquela, com o amigo Netinho também na nossa ilharga (só para lembrar vovô Alcides), I´ve Got You Under My Skin, com Michelle, nos cairia muito bem. Te amo, meu irmão!

Anônimo disse...

Engraçado, tava imaginando isso. Melina e mamãe te perguntando sobre o post e tu na maior calma, rindo de quem ainda não compreendeu que um dos nossos prazeres é esperar um ao outro. Eu esperei com ansiedade que escrevesses, te confesso. A demora me fez rir: O Zeca deve estar esperando o melhor momento e as melhores respostas, obsessivo do jeito que ele é (opa, tô falando de mim ou de ti?). O teu comentário veio com um pedido de perdão. Qual nada, eu que tenho que me perdoar por ter sido egoísta e querer que meu irmão ficasse o tempo todo do meu lado. Há de se viver o agora, o encontro de agora. O Netinho teve um sonho contigo nestes dias de tantas coincidências, mas isso eu deixo que ele te conte.
Obrigado pelo comentário. As lágrimas andam fáceis esse tempo, e vê-lo emocionado fizeram as danadas entrarem em erupção.

WCD

José Mattos disse...

Alguns reclamam que constantemente torno a autotreferência uma defesa e arrasto para os portais dos meus eus, as palavras que abrigam meus entes queridos. Talvez seja isso mesmo - uma defesa. Neste caso, acontecerá novamente e neste espaço que abrimos para contar ao mundo nossos mais sublimes defeitos e esperas, queria dizer aos dois - Wagner e Zeca - que sim: andarei nessa ilharga, com o conforto de quem reconhece nesse tipo de abraço, o bem maior dessa passagem por cá - pertencer!

J.Mattos