sábado, 12 de julho de 2008

Do que fizeram com o teu coração

O roçar monótono da vassoura sobre o chão empoeirado lembrou-me o teu bigode grisalho e a preocupação em tingi-lo todos os sábados, assim o tempo não te causaria mais danos. O cheiro de nicotina insistia em te acompanhar discreto, sobretudo às seis, quando sentavas na porta pra colocar apelidos nos vizinhos e fazer funcionar o teu relógio automático. Havia uma linha que nos unia, uma das pontas permanecia amarrada no meu dente mole, a outra no meio dos teus dedos cotós. O momento era efêmero e fundante. Logo puxavas com força, levando dentes que nunca viravam moedas. Ao final do rito vinha a mulher curar as feridas deixadas, enxugar o sangue e as lágrimas. E isso dizia muito sobre nós: a necessidade da tua violência, a minha submissão e a presença apaziguadora da mulher entre os dois homens. Um dia vi no teu caderno de anotações o nome completo do Zeca escrito com a tua letra de calígrafo. Me deu vontade de perguntar se o mais velho foi feito com amor. Calei. Sabia que ias responder algo do tipo Fazer mulher é fácil, quero ver é fazer homem... eu fiz logo 5. Eu sou profissional. E se afastaria borrifando veneno nos caminhos que os cupins construíam na parede da nossa casa. Quanto a mim, ficaria ali parado me perguntando se realmente o teu sêmen encerrava uma alquimia qualquer. O que sei é que nem os médicos deram conta do teu hermético coração. Fizeram pontes onde havia paredes. Cortaram pedaços podres. Adiaram a tua morte, mas não te fizeram amar mais que os teus cachorros e netos. Aos sete filhos restaram as lições tácitas que nem todos aprenderam: pagar as contas em dia, ajudar a quem se gosta, não negar trabalho, falar o que tem que ser falado. Nesse sábado com o sol já alto, recuso a vício fácil da televisão e as palavras elegantes do velho Freud pra fazer o nosso melhor programa: vestir uma bermuda velha, posicionar a cadeira de frente pra rua, e passar a tarde toda escutando o teu silêncio.

10 comentários:

Unknown disse...

Esse teu escrito me lembrou que está perto de fazer 2 anos da partida dele, né?dia 30/07?
Consegues, mais uma vez colocar em palavras sentimentos que normalmente tendemos a complicar mais do que o são.. e assim fazer brotar uma sensação de leve nostalgia.

Unknown disse...

è mano... nessas lindas palavras com certeza nosso pai vai dar um sorriso pro lado e tremer o bigode, como ele sempre fazia quando gostava de alguma coisa e ainda vai dizer que o filho dele é e sempre será um gênio..
Parabéns pela lembrança ao nosso pai...30/07/2008

Wagner Dias Caldeira disse...

Mana, Interessante que eu nem tava lembrando que vai fazer dois anos. Ele faz falta, mas não daquele tipo de falta que a gente diz que não vive sem, mas daquela falta que faz a gente viver mais.

Mel disse...

Eras tio, os seus escritos sempre me surpreendem, é incrível a facilidade que tens com as palavras!!Cheguei até me emocionar...beijos!!

Anônimo disse...

Fala, Bicho!

A Marina leu esse texto pra mim e, confesso, me pegou de surpresa. Enquanto ela lia me veio a lembrabça daquele fatídico dia. Era um domimgo e acordei decidido a vir embora do Mosqueiro antes do almoço, coisa que jamais fiz. Nem sei explicar o que me motivou. Sabes que sou cético com muitas coisas mas tenho que admitir que algo me tocou inconcientemente naquele dia. Passados quase dois anos essas palavras soam dentro da minha cabeça. Me leva embora pra um passado distante despertado pela frase "Um dia vi no teu caderno de anotações o nome completo do Zeca escrito com a tua letra de calígrafo". Quase vou ao choro. Gostaria de voltar no tempo e fazer coisas que ele mesmo não conseguiu fazer por ele. Por ser cético, como falei, nem tenho a esperança de um dia encontrá-lo novamente e dizer-lhe de quanto eu o amei.

Cara, parabéns pelo texto, é um belo presente pra todos nós.

Um beijo

Zeca

Wagner Dias Caldeira disse...

Zeca, a intenção era essa mesmo, ser um presente pra gente, pra dar saudade e pra vermos que o quanto ele faz falta.

Anônimo disse...

Sou muito suspeito pra tecer um comentário, afinal de contas meus ultimos meses com nosso pai me fizeram seu "cumplice", mais cada lembrança dele, principalmente as ultima, me fazem rir muito,até porque tivemos nossos problemas na infância, SINTO MUITAS SAUDADES DELE.
Sobre o comentário do Zeca, e só para efeito de registro, quando o telefone tocou naquele domingo, acho que as 9 da noite em Rondônia e a Karla foi atender, eu estava proximo e falei "é de Marabá, aconteceu alguma coisa com o papai"! a Karla atendeu e me chamou, quando ouvi a voz do outro lado, era a Edna, e ela me falou que o velho estava mal e que era muito grave, desligamos o telefone e falei pra Ines que o Papai tinha morrido, ela ainda me chamou de pessimista, mais eu tinha essa certeza, dez minutos depois quando o telefone voltou a tocar, eu não atendi de imediato, mais virei pra ela e falei que era a confirmação da morte do Papai, nunca pensei que eu ia sentir tanto, fou muito duro pra mim...
vc foi muito feliz em suas palavra, PARABENS

Unknown disse...

êta escritor da muléstia! Esse ficou no topo da escala dos preferidos por traduzir algo que também foi muito forte na minha vida.
Um abraço a todos (marido, cunhados e amigos que conseguem perceber e compartilhar da beleza dessa essência)

Anônimo disse...

Me lembro q estava sentado na beira da praia de noite quando me ligaram pra avisar da morte dele, e eu tinha acabado de vir de marabá e fiquei lembrando dos ultimos momentos com ele, ele reclamando da Seleção brasileira, da Xuxa e de outros q ele não suportava e eu gostava de escutar essas reclamaçôes e de estar com ele, minha mâe sempre diz q eu sou a copia exata de meu avô pelas reclamaçôes de coisas idiotas do dia a dia, vc descreveu muito bem todas as caracteristicas dele, Parabéns. Wanderson Caldeira

Anônimo disse...

Sou muito suspeito pra tecer um comentário, afinal de contas meus ultimos meses com nosso pai me fizeram seu "cumplice", mais cada lembrança dele, principalmente as ultima, me fazem rir muito,até porque tivemos nossos problemas na infância, SINTO MUITAS SAUDADES DELE.
Sobre o comentário do Zeca, e só para efeito de registro, quando o telefone tocou naquele domingo, acho que as 9 da noite em Rondônia e a Karla foi atender, eu estava proximo e falei "é de Marabá, aconteceu alguma coisa com o papai"! a Karla atendeu e me chamou, quando ouvi a voz do outro lado, era a Edna, e ela me falou que o velho estava mal e que era muito grave, desligamos o telefone e falei pra Ines que o Papai tinha morrido, ela ainda me chamou de pessimista, mais eu tinha essa certeza, dez minutos depois quando o telefone voltou a tocar, eu não atendi de imediato, mais virei pra ela e falei que era a confirmação da morte do Papai, nunca pensei que eu ia sentir tanto, fou muito duro pra mim...
vc foi muito feliz em suas palavra, PARABENS