sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Poemas para Lembrar


Figueira da Foz

O mar lambe as lembranças
É a foz da minha saudade
Tenho a imensidão da tua costa
Acenando o que me falta

Coimbra IV

A pedra da vigília se liquefaz
O tempo passa, mas tu não
Estadia que me transforma
Por muitos anos, senão sempre
Estarás em minhas pálpebras

Jerônimos
 
Pessoa – estátua e verbo – jaz
Em sua santidade monumental
Vejo o paço, a pia, rezo no altar
O teu sagrado elucida meu silêncio
Já nem sou um homem que chora
Em minha benção, tua palavra

Santa Clara

De cima do monte
Vigias a cidade
Tuas lágrimas negras
Formulam o Mondego
Por ele descem barcos
Memórias e fados
Santificados

Sintra

Pelas mãos de Margarida fui guiado
Pelas colinas rodopiantes da cidade
No alto, um castelo nos esperava
Vi meu futuro em verde e vermelho
E soube de pronto que para lá voltava
Sem delongas ou medos, entre abraços
À pátria que amei desde aquel’dia

(J.Mattos)

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

A densidade do abraço

Dentro de mim congelado o ato irrequieto de estada, pertencimento. Quando farsa, a mola da repulsa se ativa e a coisa agarrada se distancia, dentro da gente acalma tudo quanto maldade. O abraço antigamente tinha sintomas que perduravam.

O tom quente e vermelho do enlace, o arco suave do bater de dedos na espinha de quem estava e a semente plantada pela recolha sensível dentro dos braços. Abraço era unir-se a si mesmo pelo outro, ato purinho de criação da gente. A comunhão perfeita de aceitar-se para se dar integralmente.
Oriundo de um tempo em que o quadrado das águas era sem mapa e na lousa se escrevia a lição de casa, a casa era a antessala do sossego e este último a única inspiração, a entidade nascida no molde dos corpos, transitava nua sob a linha umedecida do afago, da espera, da entrega e das coisas tenras.

De ossos perfurados, estrutura difusa, arquitetado agora em redes virtuais, o abraço definha e se beija noutro espaço. Naquele em que eu e você não somos nós nem somos nossos, despertencidos. Somos de todos e esperamos mais nada. Dentro do abraço de hoje eu curto o que me enjoa, o que se publica, a mostra satírica da liberdade sem dose ou terrenos. O que se expõe, mas não se tem. Liberdade erma.
O abraço foi perdendo os dentes e a loucura boa de dar em qualquer lugar, de ser verde e fundido, agarrado e demorado, quase infinito. Muitas vezes em vazios imensos, muitas vezes sem uma palavra que explique. Porque qualquer lugar agora inexiste e abraço é só uma palavra que ata os membros superiores de pessoas cada vez mais desconhecidas. J.M.N.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Outras coisas sobre o lugar

Coimbra II

A pena torna-se agulha
Fura a veia, e, viciante
Entre palavras me inscreve
No sangue, teu nome

Cabo da Roca

A ponta do mundo, a Roca
Donde partiram meus antigos
Vizinhos de tempo e muda
Patrícios, irmãos pelo mundo
Porto que ainda me chama

Joaquim Matos

Ganhei-te, herói no totem
Máximo ancestral desconhecido
Em casa de minha lembrança
Ileso, permanece aceso
Fábula e ente dentro do nome

Coimbra III

Tua noite em prantos, percorro
Ao som das guitarras tristes
Canto entre as capas pretas
Tudo em mim é antigamente
Como o passado das tuas paredes
Como o cheiro do meu presente

Josés
(publicado originalmente em 2009)

Sou dentre eles o quarto.
Herdeiro inaudito das tramas,
das mansas, das duras. Andanças.
Daquelas em cuja esperança
dobrou-se o acorde dos sins.
Sou, dentre os mesmos, estranho.
Dentre os mortos o enfim.
Nomeado em alcunha extremada
e como versos, rimando as espécies,
repito um nome entrementes findo
e presente,
pois se os corpos extinguiram-se
quase santos,
o nome perdura semente. J.M.N.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Dez Encontros (VII)



Meu Senhor,
         Uma recusa em te concluir nasce e cresce em mim, como as daninhas vidas que rastejam nos nossos confins. Cheguei até aqui com as provisões nas últimas. Cheguei maltrapilho, maltratado pela tua letra. Outro. Agora te miro sem reagir enquanto enfeixas meus medos, meus escuros de dentro, a dizeres de mim no umbigo das tuas mineirizes.
Arranchado nas noites de chuvas madrugosas, te adivinhava chegando carregado dos verdes dos buritizais. Eu que te procurava, sempre. Caçava esse jeito doce de saber que cada palavra é um ouriço, e que são as castanhas de dentro é que fazem as sustanças da gente. Bilé eu me encontrava, frouxo da razão, com juízo desatado, a mente desencostada da lógica – desse jeito eu cria que concederias tudo assim: de beijadas mãos. Me querias pactário; convertido e fanático àquela igrejinha que levantastes com a exatidão da tua mão de jagunço atirador: a mão que nunca forou o coração de um outro jagunço.  
É dificultoso achar as veredas nesse teu sertão. Até os carcarás lá de cima precisam apertar bem os olhinhos de rapina pra medirem a grandeza desses campos. Cheguei aí na tua terra dia desses. Vi Otacílias que se recusam à espera, mas de uma boniteza de roubar todo o ar da gente, e capazes de, só com um olhar lançado, plantar um Saara dentro da nossa boca. Confesso, meu senhor, que, por vontade própria minha, tornei-me teu refém. O meu cárcere são as paisagens dessa guerra alinhavada com bem-quereres e saudades entre jagunços, travessias, resistências contra as seduções do diabo e a procura do Deus que está em tudo, mesmo onde não há.
O meu sangue coalhou nesse desvendar-se nos teus vieses. Foi esse modo de querer fortemente algo que teima em não se dar que se instalou, em mim, como um sesto. Agora sei, dolorosamente, que percorrer tuas páginas é viagem sem volta, sem retrovisores, apenas o vento a alisar os cabelos e engambelar as bússolas. O sertão são as ruas, os prédios, os rios e os campos com castanheiras esturricadas a sustentar tempestades. A guerra é o amar e desamar, fiar e desfiar, abeirar e se jogar quando o medo por fim esbarra nas fustigações do desejo. Eu me lancei na tua maré, a água veio e fez um carinho no meu espinhaço. Encrespou todo o meu dentro. wdc


Além do que não disse

Então será assim – de quando em quando. Conhecidos que se esbarraram nas mesmas ansiedades e amores, sem dizê-los, que fique claro. Amigos com dias marcados. Nossos aniversários, as compras do mês na quitanda próxima de casa. Enquanto fazes as tuas contas no trabalho, eu ando pela nostalgia infinda daquelas conversas. Atrasado, sempre atrasado. Esperando que o rumo do fim do dia me leve ao teu sorriso. Nada mais. Esse é um dos tantos desejos inexplicáveis que floresceram. Não é, a bem dizer, uma espera. Não é a lascívia falando. Mas a confiança de que o destino foi generoso o bastante para juntar nossas expectativas em silêncio. Beleza em suspensão, como as métricas sinfônicas de antigamente. Enquanto eu canto, ficas em silêncio. Enquanto encontro os afazeres diários, tenho sempre na memória o dia em que tiraste minhas dúvidas e provaste por “a” mais “b” que não somos seres intermináveis. Mesmo perdido, amargo, cheio de medos e insatisfações, o riso nos pegava certeiro. Encorpado das muitas coisas que amamos juntos. Eu com minha família, tu com a tua. Criando filhos para o mundo dos outros. Tentando não ser demais com os meninos. E ainda assim, ocupando-nos dos erros mais estúpidos, bem afinados com o que somos – dois mentecaptos taciturnos e esquecidos. Carregados de amores e desolação. Feitos um para o outro nos tantos bancos de praça que não frequentamos. Afinal, temos a certeza de que o abraço, a fraternidade e a quietude de não consumarmos mais do que o olhar é o que deve ser feito. Tuas formas, o canto da tua boca, aquilo que vi e aquilo que fingi ver serão sempre mais do que podíamos e mesmo assim, muito menos do que a matéria que me faz traduzir nos meus diários noturnos o que nunca disse. De vez em quando, ao sabor das horas, esqueço-me. Nesses momentos dá um prazer danado dizer em voz baixa o teu nome. O nome feminino do teu batismo, de um poema que conheci menino. Nome das coisas que não se diz e mesmo assim, as coisas que valem mais que qualquer valor, que qualquer presunção de entrega. J.M.N.

Para ler escutando...

Misread - Kings of Convenience

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Quatro coisas sobre o lugar

Coimbra

Ilha de coisas a me perder
Mirantes, Mondego, milhas
À noite teu canto ainda evoca
Dentro em mim permanecida

Mondego

Nas tuas costas pisei
De pés além e corpo úmido
Rio de curvas quase nulas
Minha casa em Vera Cruz

Chamusca

Viva as amoras em flor
O gosto sumo em sua presença
Escorre dos lábios permanente
A imagem do amor que não veio

Lisboa

Vasta e curva sob meu sonho
Que se arrasta e reedita as cores
Ainda não vim, não deixei Pessoa
Nem dos Jerônimos me despedi

(J.Mattos)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Cegos na plateia

Deram-me o papel principal
Como nos cem atos
Dessa tragédia me deram
As falas, as roupas, os costumes
Tudo me deram para representar
Estou no centro da cena
Um homem entediado e solene
Esperando que morte ou mistério
Me levem para dentro das pedras
Serei um ator mineral
Sem fala, roupas ou credos
Existindo apenas porque o tempo
Concentrou suas contas em mim
Não haverá debulha de medos
Já não conto com a claque gritando
Sou esse imóvel deserto
No centro do palco dançando
Quem verá minhas pernas dormentes?
Quem será a plateia que espera?
Do que já soube um dia,
Dos horários e matinês concorridas
Nada sobrou, nada se diz
E mesmo sozinho, interpretando
A mesma peça, anos a fio
Não deixo a cena nem a fala
Pois, há os cegos me aplaudindo
Que compraram todas as entradas
O homem que interpreto
Não precisa mais ser visto

(J.Mattos)

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Lume

O silêncio enciumado grita
Diante do branco anúncio
Tua presença encima escuridões
Atraí os prismas
Refaz a última rima triste
Transforma cor em detalhe
Labareda de uma explosão
A própria descoberta do dia
Dá-me o lume que deslinda
Minha natureza pequena
Minhas horas esquivas
Esteja como pulso ou onda
Em todos os cantos de mim

(J.Mattos)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

LIVRO: Mata! – O Major Curió e as Guerrilhas do Araguaia



Acabo de ler o livro do jornalista Leonencio Nossa, “Mata! – O Major Curió e as Guerrilhas do Araguaia”, editado por Companhia das Letras em 2012. Devo dizer: um livro necessário, bem escrito e com detalhes interessantes sobre os ciclos econômicos do estado, sobretudo, a partir da intervenção militar que culminaria com o extermínio dos guerrilheiros do Araguaia, entre 1972 e 1975. Entretanto, em minha opinião, ainda não é “O” livro sobre o terrível personagem que reinou no sul e sudeste do Pará desde a época da ditadura até recentemente. 
 
Mesmo com imensas qualidades como descrições detalhadas das incríveis, e por vezes surreais, relações entre personagens históricos de todo Brasil e muitas das pessoas que fizeram a história recente do Pará, em especial na região de Curionópolis, El Dourado dos Carajás, Marabá e Parauapebas, senti falta de demonstração e esclarecimento mais firmes sobre os feitos de Sebastião Moura, o terrível Major Curió, enquanto comandante das tropas que dizimaram guerrilheiros, torturaram moradores, obrigaram pessoas a trabalhar como delatores e guias do exército, além de ter comandado com a mesma intransigência espartana da caserna, o garimpo de Serra Pelada, a criação de Curionópolis (uma das muitas excrescências do Brasil contemporâneo) e os levantes que culminaram na criação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.
 
O trabalho de Leonencio, que visitou diversas vezes o Pará, seguiu pelos rincões do Brasil muitas pistas sobre a vida de Curió e ainda usa e cita referências de peso da historiografia paraense como o livro Motins Políticos ou História dos Principais Acontecimentos Políticos na Província do Pará, de Domingos Raiol, sem dúvida tem o mérito de escrutinar eventos de pouco conhecimento dos paraenses, como a vida dos “formigas” em Serra Pelada, seu sistema social e econômico, o trabalho escravo promovido por famílias tidas como baluartes de nossa sociedade e que enriqueceram às custas da pobreza de muitos imigrantes e colonos na exploração da castanha. No livro, essas figuras tornam-se, muitas vezes, personagens secundários, mas servem de alerta para o fato de não conhecermos nossa história e colocam em perspectiva a história de enriquecimento da elite paraense, cujas origens históricas nada têm de nobre ou lícito.
 
Mata! deve ser lido e estudado e deve servir de base para outros trabalhos, quem sabe da próxima vez, realizados por paraenses, pois isso também salta aos olhos... Assim como o livro de Taís Moraes e Eumano Silva – Operação Araguaia, trata-se de obra de um estrangeiro. Precisamos dedicar mais tempo à nossa própria história, senão, as visões sobre o que é o Pará e a Amazônia serão sempre crônicas de quem passa e não documentos e historiografia local. Faz-se necessário, por tal, relembrar que as pessoas que podem contar e certificar os acontecimentos da Guerrilha do Araguaia e das diversas insurgências que se seguiram na região do Bico do Papagaio e outros lugares do Norte podem não estar entre nós dentro em breve e, portanto, é urgente adensar os registros e pesquisas sobre o tema.
 
Por fim, mesmo sendo um bom trabalho, o livro de Nossa registra que há muitos arquivos pessoais de Curió ainda não conhecidos e que, como parte do mito, o próprio Curió se reserva o direito de manter informações vitais que esclareceriam inclusive os casos averiguados pela Comissão Nacional da Verdade, tratando-se, pois, de material essencial ao trabalho de recuperação histórica e reparação às famílias dos desaparecidos não havendo mais tempo ou desculpas para serem acessados e analisados com a profundidade que merecem. J.M.N.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Enfeite

Antes que venha o sonho mais uma vez confundir minha vigília. Antes que a carta de amor que escrevo nasça ridícula, antes mesmo de o sabor do beijo se formar como a poeira do esquecimento sobre meus livros, eu te chamo para viver num retrato. No centro de uma parede branca em minha casa. Rodeada de um nada concreto, um mero apoio ao telhado, muralha de sentimentos, continente em limite. Tua foto, imagem única na sala de estar. Convido-te a servir de enfeite, de ponto de referência para os imprecisos que eu vier a usar, duto por onde passarão minhas linhas escapando da realidade e fora mesmo de lugar. Antes que tu, como tema, torne a vencer minhas conquistas e se espalhar nas chagas de tanta vida, quero que chegues ao espaço que nunca ocupei em teus dias, mirante suspenso em meio às coisas comuns de uma casa simples, cuja maior aspiração era servir de espaço, lugar que nos contivesse – fosse aqui ou noutro lugar. Olho teus olhos capturados no clique e vejo quase tudo o que me falta – tua presença, teu sorriso se espalhando em teu rosto, aquela blusa que compramos numa viagem e, claro, teu silêncio de fotografia. Como se tudo do que fosses capaz enquanto andávamos fosse a estática dura, as cores baças de uma foto já sem história, artefato de medir o tempo irreal do que senti e fui. Pendurada num único parafuso, como ancorada na parede branca sem nada mais que suportar. J.M.N.