terça-feira, 22 de abril de 2014

Adios Gabo!


Cuida que não era pra doer tanto! Assim eu ouvi. Uma quase desculpa pela mão pesada que esquentou meu rosto. Sempre engolia o choro. Rebeldia fisiológica aprendida uns meses antes, durante uma surra de cinto e outras coisas do ambiente. Era época de provas no colégio. Irmã Dulce em coma por causa da idade. Isso doendo também. E ela. Ela tinha um novo namorado. Ademais, os amigos achando que eu era um delator. Sofri calado. Urdido por essa coisa seca e pesada do compromisso com o fracasso em nossa estirpe. Ergue-se a cabeça por uns instantes, mas não, nada de seguir adiante; nada de superar as dores, ou superar-se. Nisso, correndo contra o tempo que estipulara para uma curta e intensa vida de desespero e ilusão, tombei com aquele seu amor nos tempos do cólera. O título cabia em tudo o que sentia e pensava a respeito da dinâmica da casa, das relações, das eviscerações noturnas que começaram não sei quando, mas que determinavam com um peso assombroso o rumo das minhas primeiras linhas sobre o papel. E engoli palavra a palavra numa única noite. E mais uma vez nos dois ou três dias seguintes. De maneira que pela primeira vez um choro quente e desamparado caiu-me dos olhos por causa de algo que li. E para sempre me fisgou a alma o Gabo e sua escrita, o homem e seu universo de arquitetura em solidão e amor. Ou seja, arquitetura feita de uma mesma coisa magnífica e explodida que nos amplia, acossa, dilacera e faz querer mais. Como um pico. Como uma boca marcada por tantas outras. Como um abismo que não deixa escolha, senão lançar-se. Estou em Macondo, desde o primeiro tiro que falhou em minha têmpora, desde que elegi escrever para poupar os pulsos. Desde que o conheci estou em guerra com a impossibilidade de escrever igual, ou ser tão imenso que a partir de mim, verbetes sejam criados em dicionários e o cinema, a música e mesmo a fala corriqueira da América Latina, trocaram os borrolós furados da mesmice e se fizeram em ouro para saudá-lo. E depois de tanto me dar, ele morreu. Numa pálida quinta-feira de abril. Não consegui chorar-lhe as lágrimas devidas. Estava apto para esquecer e seguir, era o que pensava. Mas hoje ao acordar, senti o peso daqueles dias voltando. Cobrando de mim o empenho para mais um retorno sufocante ao que não sou. Dias de trabalho incessante. Naquilo que, além de não me definir, não me arrebata. E lembrei a incrível descrição da queda do Dr. Juvenal Urbino de Calle, marido de Fermina Daza, totalidades existenciais – como dizia Manuel Bandeira – do romance o amor nos tempos do cólera. Ali, na narração de uma queda estúpida que traçaria os mais incríveis contornos da história, descobri o sentimento que me arrebatou quando soube da morte de Gabriel. Em segundos, vi toda a dimensão do que ele e sua literatura me significam. E sinto que ainda estou lá, caindo. Num tempo em que não sobram lágrimas para os ídolos, eu choro por ele escrevendo estas linhas. Vou ficando por aqui. Suspenso na dor de sua agora inexistência. Quem sabe ele cumpra o destino do velho José Arcádio Buendía e se torne parte de uma árvore. Em mim, está. Solene, vultoso e sozinho, como uma tarde de tempestades de estrupício em Macondo. J.M.N.

Baixe aqui, o amor nos tempos do cólera

Nenhum comentário: