sexta-feira, 23 de maio de 2025

Punhal de Sonhos

Hoje senti saudades de ti. Coisa rara em meio à seriedade da mimja vida de agora. Sentei e desandei os afazeres como antes. Como quando chegavas e me apanhavas na Sé Velha para andarmos de carro ouvindo músicas e as notas políticas de ocasião. Vivíamos enfurnados um no outro. A dor macia da escravidão do desejo. Muito além de Passargada, dentro do frio irreversível das ilhas Aleutas, imensidade e fim. Senti esse miasma entre nossas memórias. Os cafés que frequentamos. Os presentes que trocamos. Coimbra no frio de janeiro e casacos de lã. Ficávamos sentados na poltrona velha a escutar una notte a Napoli vezes sem fim. É acolhedor esse ardor do passado. Dá de novo as fomes de verbo e pele. À moda de esperança, vou à janela. Na rua deserta, nossos passos grafados em um visco luminescente. Ando até o fim da trilha. A riqueza de um tempo em estivemos perdidos um no outro, que líamos poesia e leis dinamarquesas, interessavamo-nos pelo signo perdido da fraternidade e pelas possibilidade de filhos transnacionais. Inconsequentemente, como sofistas, argumentado vazios belíssimos e lambendo as feridas à vista. Eu, a tua necessidade de atenção e périplo. E tu, a minha infinita fome de doação e desatino. JMN

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terça-feira, 25 de março de 2025

Nas terras desertas da noite

O imenso abismo onde os medos se aquilatam, as distâncias se expandem e qualquer barulho ou vento se tornam presságios, monstros, assobios da morte. Aqui, deitado na cama, aborrecido pela distância entre o que fui e o que perdi de mim mesmo, reflito a séria condição do réu, culpado por não ter chorado quando da morte de sua mãe. O tiro, o sangue e até o motivo nada importam. Foi a falta de choro, a catapulta do dolo. Foi a perda anestesiada pela distância que forjou o assassino. Assim como foram as ideias mortas que pesaram na mão do carrasco, a falta dos pais que isolaram a alma. Um por um dos motivos povoam os olhos tristes de quem está deitado aqui. Meu corpo sabe. Eu sei. As canções e madrigais todos espelham. São os cânones do abandono, a lua triste. A cama enorme sem corpo que aqueça e a saudade visceral do que nunca houve. Minha derrota neste exato momento é a memória milímétrica do fim. Nosso fim. Nem trágico, nem feliz. Aplainado em covardias e nuances. As músicas de Noel e os sambas de Batatinha. Sempre tanta tristeza. Ó sono invertebrado em sem juízo, chegue logo e vomite teu breve esquecimento que eu preciso afastar a ideia de um novo dia e estar na eternidade do sonho por mais que dois ou três soluços. Venha e quebre os portões do umbral, verás que nesse não lugar eu posso sorrir, posso cantar em notas gregas e até dizer que sou feliz. Dá-me esse infinito de loucura e doação dos que descansam. Ainda que por uma noite. Ainda que o meio do deserto. JMN.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Fêmea

Eu rogo Odisséias para voltar ao mundo,

O que fomos antes de toda essa orgia e decrepitude.

E te saúdo, brilho vulgar da bala do tempo,

Atirada contra meu peito que ainda dói de tanto amar.


Esse verbo sem ossatura que me arquiteta e respalda,

Como a escritura da terra do lavrador de alimentos.

Eu te consumo no clarão da dúvida

E espicaço a promessa de ser tua unicamente.


Dou-me aos mil homens do estádio em fúria,

Torcedores túrgidos de um domingo à tarde.

Era para ser óbvia minha canção de entrega,

E, no entanto, não soubeste decifrá-la, e nos perdemos.


Mas ainda te saúdo, homem de agora,

Pequena e masculina figura que não tem membros,

Que resmunga da minha dose de bebida

E reclama do pouco pano que me cobre.


Tu és a voz que se deteve quando eu cantei,

Devotas-te ao abandono só para me ter por perto

E abraças o irreparável da loucura.


Sou o ex-voto da tua paixão de menino,

A robustez do golpe que te arrancou a compostura.

Sou essa instância da humanidade que te trucida,

Reflexo cristalino da tua impostura.


Cantídio