terça-feira, 30 de setembro de 2025

Mais um samba

Tínhamos tudo para sermos um samba de Noel e figurar nas páginas de um folhetim qualquer. Quando nos amamos daquela forma, virtuosa e sempiterna, destrutiva e despudorada por dentro de janeiro, nas coxas do abandono, mil lugares e canções. Mortos no vento de maio, sangrando em agosto, no lixo de setembro. E, depois, no ocaso de Outubro, com asas de miriti, anjos caidos por aí. Um ano inteiro de ira e devoção. Dissemos avessos, pestanejamos ao longo do desejo. Entregues à reencarnação de nossas piores experiências e antagonismos. Dissemos de tudo um pouco. A vilania era uma nossa argamassa. Estivemos em Chipre, nas festas de São João, morrendo por qualquer coisa, dentro da tristeza de não sabermos os limites um do outro. E podes dizer tudo, que não paguei as contas, que fui infiel e tive medo de abandonar a segurança do porto, mas jamais diga para o vento, que houve ódio ou indiferença, pois jamais saímos um do outro, mesmo a vida transcorrendo dolorida, com marcas nascendo em nossos corações, sempre estivemos lembrados,  presentes no sobressalto do fim, quando as mensagens soavam no celular, quando as cinzas assentavam na quarta-feira e, principalmente, quando andando pelas ruas da nossa cidade, escutávanos os fogos da procissão durante a qual esquecemos a santidade e resolvemos amar todo o amor do.mundo de um só gole, numa só chama de intensa enteega e impossibilidade. JMN.

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quarta-feira, 30 de julho de 2025

Detesto despedidas

Detesto despedidas.

A coisa toda.

Bater portas.

Dar adeus.

Acenar.

Olhar perdido.

A merda toda.

Detesto.


Detesto a sensação de vazio depois que a gente diz o adeus.

Detesto também a sensação de completude quando a gente diz adeus —

a completude do que acabou,

do que se fez e se gastou até às cinzas.

A ruptura do existir, a trégua dura do beco sem saída.

Detesto despedidas.


Detesto o ar que roda nos pulmões

depois que a gente solta o ponto final

na equação da vida,

na tábua das relações.

O peito partido, centelha e espiral.

Detesto.


Acho muito pouco simplesmente dizer adeus.

Às vezes é preciso estragar,

concluir tudo com muita antecipação,

derrubar castelos,

implodir estruturas.

Feio.

Necessário.

Antecipadamente finito.


Mas é penoso demais,

desgastante até a alma,

ter que se despedir.


Na festa, trinta pessoas te param pra dizer adeus.

Quando a gente viaja,

pessoas acenam e choram,

e a janela do avião vira aquele buraquinho,

meu Deus, aquele buraco


onde a gente vai vendo as pessoas cada vez mais distantes,

a nossa terra mais distante,

as raízes da gente,

como se à deriva de um esquecimento inútil, pérfido. Suave apenas de desespero.


Detesto despedidas.

O fim das coisas.

O deixar de ser.


sexta-feira, 23 de maio de 2025

Punhal de Sonhos

Hoje senti saudades de ti. Coisa rara em meio à seriedade da mimja vida de agora. Sentei e desandei os afazeres como antes. Como quando chegavas e me apanhavas na Sé Velha para andarmos de carro ouvindo músicas e as notas políticas de ocasião. Vivíamos enfurnados um no outro. A dor macia da escravidão do desejo. Muito além de Passargada, dentro do frio irreversível das ilhas Aleutas, imensidade e fim. Senti esse miasma entre nossas memórias. Os cafés que frequentamos. Os presentes que trocamos. Coimbra no frio de janeiro e casacos de lã. Ficávamos sentados na poltrona velha a escutar una notte a Napoli vezes sem fim. É acolhedor esse ardor do passado. Dá de novo as fomes de verbo e pele. À moda de esperança, vou à janela. Na rua deserta, nossos passos grafados em um visco luminescente. Ando até o fim da trilha. A riqueza de um tempo em estivemos perdidos um no outro, que líamos poesia e leis dinamarquesas, interessavamo-nos pelo signo perdido da fraternidade e pelas possibilidade de filhos transnacionais. Inconsequentemente, como sofistas, argumentado vazios belíssimos e lambendo as feridas à vista. Eu, a tua necessidade de atenção e périplo. E tu, a minha infinita fome de doação e desatino. JMN

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terça-feira, 25 de março de 2025

Nas terras desertas da noite

O imenso abismo onde os medos se aquilatam, as distâncias se expandem e qualquer barulho ou vento se tornam presságios, monstros, assobios da morte. Aqui, deitado na cama, aborrecido pela distância entre o que fui e o que perdi de mim mesmo, reflito a séria condição do réu, culpado por não ter chorado quando da morte de sua mãe. O tiro, o sangue e até o motivo nada importam. Foi a falta de choro, a catapulta do dolo. Foi a perda anestesiada pela distância que forjou o assassino. Assim como foram as ideias mortas que pesaram na mão do carrasco, a falta dos pais que isolaram a alma. Um por um dos motivos povoam os olhos tristes de quem está deitado aqui. Meu corpo sabe. Eu sei. As canções e madrigais todos espelham. São os cânones do abandono, a lua triste. A cama enorme sem corpo que aqueça e a saudade visceral do que nunca houve. Minha derrota neste exato momento é a memória milímétrica do fim. Nosso fim. Nem trágico, nem feliz. Aplainado em covardias e nuances. As músicas de Noel e os sambas de Batatinha. Sempre tanta tristeza. Ó sono invertebrado em sem juízo, chegue logo e vomite teu breve esquecimento que eu preciso afastar a ideia de um novo dia e estar na eternidade do sonho por mais que dois ou três soluços. Venha e quebre os portões do umbral, verás que nesse não lugar eu posso sorrir, posso cantar em notas gregas e até dizer que sou feliz. Dá-me esse infinito de loucura e doação dos que descansam. Ainda que por uma noite. Ainda que o meio do deserto. JMN.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Fêmea

Eu rogo Odisséias para voltar ao mundo,

O que fomos antes de toda essa orgia e decrepitude.

E te saúdo, brilho vulgar da bala do tempo,

Atirada contra meu peito que ainda dói de tanto amar.


Esse verbo sem ossatura que me arquiteta e respalda,

Como a escritura da terra do lavrador de alimentos.

Eu te consumo no clarão da dúvida

E espicaço a promessa de ser tua unicamente.


Dou-me aos mil homens do estádio em fúria,

Torcedores túrgidos de um domingo à tarde.

Era para ser óbvia minha canção de entrega,

E, no entanto, não soubeste decifrá-la, e nos perdemos.


Mas ainda te saúdo, homem de agora,

Pequena e masculina figura que não tem membros,

Que resmunga da minha dose de bebida

E reclama do pouco pano que me cobre.


Tu és a voz que se deteve quando eu cantei,

Devotas-te ao abandono só para me ter por perto

E abraças o irreparável da loucura.


Sou o ex-voto da tua paixão de menino,

A robustez do golpe que te arrancou a compostura.

Sou essa instância da humanidade que te trucida,

Reflexo cristalino da tua impostura.


Cantídio