O imenso abismo onde os medos se aquilatam, as distâncias se expandem e qualquer barulho ou vento se tornam presságios, monstros, assobios da morte. Aqui, deitado na cama, aborrecido pela distância entre o que fui e o que perdi de mim mesmo, reflito a séria condição do réu, culpado por não ter chorado quando da morte de sua mãe. O tiro, o sangue e até o motivo nada importam. Foi a falta de choro, a catapulta do dolo. Foi a perda anestesiada pela distância que forjou o assassino. Assim como foram as ideias mortas que pesaram na mão do carrasco, a falta dos pais que isolaram a alma. Um por um dos motivos povoam os olhos tristes de quem está deitado aqui. Meu corpo sabe. Eu sei. As canções e madrigais todos espelham. São os cânones do abandono, a lua triste. A cama enorme sem corpo que aqueça e a saudade visceral do que nunca houve. Minha derrota neste exato momento é a memória milímétrica do fim. Nosso fim. Nem trágico, nem feliz. Aplainado em covardias e nuances. As músicas de Noel e os sambas de Batatinha. Sempre tanta tristeza. Ó sono invertebrado em sem juízo, chegue logo e vomite teu breve esquecimento que eu preciso afastar a ideia de um novo dia e estar na eternidade do sonho por mais que dois ou três soluços. Venha e quebre os portões do umbral, verás que nesse não lugar eu posso sorrir, posso cantar em notas gregas e até dizer que sou feliz. Dá-me esse infinito de loucura e doação dos que descansam. Ainda que por uma noite. Ainda que o meio do deserto. JMN.
terça-feira, 25 de março de 2025
quarta-feira, 29 de janeiro de 2025
Fêmea
Eu rogo Odisséias para voltar ao mundo,
O que fomos antes de toda essa orgia e decrepitude.
E te saúdo, brilho vulgar da bala do tempo,
Atirada contra meu peito que ainda dói de tanto amar.
Esse verbo sem ossatura que me arquiteta e respalda,
Como a escritura da terra do lavrador de alimentos.
Eu te consumo no clarão da dúvida
E espicaço a promessa de ser tua unicamente.
Dou-me aos mil homens do estádio em fúria,
Torcedores túrgidos de um domingo à tarde.
Era para ser óbvia minha canção de entrega,
E, no entanto, não soubeste decifrá-la, e nos perdemos.
Mas ainda te saúdo, homem de agora,
Pequena e masculina figura que não tem membros,
Que resmunga da minha dose de bebida
E reclama do pouco pano que me cobre.
Tu és a voz que se deteve quando eu cantei,
Devotas-te ao abandono só para me ter por perto
E abraças o irreparável da loucura.
Sou o ex-voto da tua paixão de menino,
A robustez do golpe que te arrancou a compostura.
Sou essa instância da humanidade que te trucida,
Reflexo cristalino da tua impostura.
Cantídio