sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Quem escreve os romances?

Ontem assisti minha terceira versão de “Os Miseráveis”, incrível saga sobre as condições de vida e relacionamento do povo francês com a justiça e outras instâncias estatais entre a batalha de Waterloo e os motins populares da Paris de 1832. É, para mim, além do mais, uma história sobre amor e revolução, esperança e sonhos maravilhosamente escrita pelo francês Vitor Hugo no século XIX. Sobre o filme-musical de Tom Hooper, diretor que já venceu o Oscar com o “Discurso do Rei”, tenho apenas uma coisa a declarar, e o farei com a mesma simplicidade entusiasta com a qual, imagino, o editor de Vitor Hugo tenha recebido os manuscritos originais: brilhante!

Emocionado pelos efeitos visuais e intenso apelo emocional que a história sempre me suscitou, passei toda a sessão em misto de enlevo e falta transido por um pensamento fixo, uma busca silenciosa por lembrança que fosse acerca de talentos contemporâneos similares aos de Vitor Hugo, Prosper Merrimée, Machado de Assis, Lúcio Cardoso, Juan Rulfo e tantos outros grandes escribas. Quem escreve os romances de hoje? Quem são os sagazes observadores de nossa sociedade, que emprestam talento e tempo para delinear nossas lutas e vitórias, nossas contradições e dissensos?

Talvez coubesse mesmo perguntar: quem se importa com isso nos dias de hoje? Tudo à mão, a reflexão entocada nas gavetas, as ousadias política e social sedimentadas por discursos sub-reptícios e estéreis, a imagética bombardeada pela TV e pela Internet, disparando preconceitos e compreensões totalitárias e perigosas sobre tantos assuntos importantes, permitindo a proliferação virulenta de expressões inconsequentes, de opiniões, de gestos. E, por outro lado, tantos assuntos emergentes sendo tratados com velhas fórmulas intelectivas, escumalhos de racionalidades cristalizadas e amiúde perdidas entre os momentos da história. No caso do Brasil, a não tão longínqua ditadura e a ainda não bastante amadurecida redemocratização.

O chavão “temos que repensar os paradigmas”, talvez requeira algo mais radical – o repensar da própria concepção de paradigmas. Não estaríamos chafurdando no caos de modelos defectíveis e ultrapassados? Pior, há modelos seguros a empregar?

Os personagens de Os Miseráveis encarnam, em meu ver, estamentos sociais que necessitam nossa permanente vigilância e revisão: Fantine, vítima do abandono e da injustiça – atacada por ser mãe solteira e obrigada a dispor de sua dignidade às margens da cidade, por leitos alugados, o corpo invadido; Jean Valjean, aprisionado por roubar um pão para saciar a fome de um sobrinho e marcado com um número que o descaracteriza como humano e o transforma em objeto do estado.

Mesmo tornado cidadão exemplar, Jean não se desgarra do passado, moldando-se pela culpa de ter sido substituído em juízo por outro homem e relutante em aceitar seus bons feitos como pago da dívida sagrada que mantinha com seu Deus. O duríssimo inspetor Javert, cuja insígnia policial e o passado militar o fazem executar as leis de maneira inflexível e impiedosa. Esta é a razão pela qual, ao ver-se conflitado pela busca de redenção de Jean Valjean e o seu ato de libertá-lo em vez de mata-lo na barricada por estar espionando os rebeldes, não suporta o conflito interno e tira a própria vida. Atira-se no rio, não sem antes questionar como seria possível viver com o peso de um condenado aos seus olhos, ter sido piedoso quando ele mesmo não conseguira ser. Este não é um conflito presente? Não está sulcado na textura social dos dias de hoje?

Sem perdão para si, o personagem permite que a culpa seja mais forte do que o perdão e atualiza a perspectiva de Hanna Arendt sobre o auto perdão como uma potentíssima via de acesso para um melhor convívio com a diversidade social. Assim como o auto perdão, o reconhecimento de um ato de amor transforma o olhar exclusivamente revolucionário do jovem Marius, em um sentimento de cuidado ainda mais profundo em relação à sua amada Cosette, filha adotiva de Jean Valjean, o rebento pelo qual Fantine lutara em busca de sustento no início da trama. Perto da morte, Jean Valjean é declarado quite em sua dívida com a vida, tanto pelo reconhecimento de Marius, quanto pela confissão de seu passado à Cosette.

Nesse emaranhado de sentimentos e símbolos, o breque da revolução tira a vida de jovens idealistas e corajosos, relegando-os ao abandono da camada à qual, precisamente, destinava-se sua luta e soerguia-se sua voz contra a tirania, a exclusão, a falta de direitos e quitais. Entrementes, a mesma revolução mobiliza outros tantos perecidos na tutela de um estado opulento e sectário, cuja abandalha atiça as brasas da pobreza para servir-se do conforto dessa fogueira de perdidos. Quem são Os Miseráveis afinal?

Ao sair do cinema, uma imagem ainda me arrancaria uma última lágrima. Uma senhora muito idosa sendo amparada por duas outras senhoras levantava de sua poltrona e declarava baixinho: que maravilha, que maravilha. Musicado, filmado, encenado com cores e luxo nas óperas de Londres e Paris, a história de Os Miseráveis é mesmo uma maravilha. Ler o romance, escutar as belas músicas criadas para potenciar os diálogos e incrementar a dramaturgia da trama é um excelente exercício de aprofundamento no espírito humano para qualquer pessoa em qualquer idade. Desde as que tiveram a oportunidade de ser educadas com romances, até aquelas que esperam ver resolvidas as tramas romanescas em uma imagem, nas letras da última legenda.

Quem escreve os romances de hoje? Minha pergunta, enfim, fica aqui sem resposta. Apesar disso, ao terminar este texto, me dou conta de que o mais importante é que o romance ainda existe. Pode ter o nome de maravilha, maravilha, pode ter o nome do amigo que me acompanhou ou da pessoa amada que segurou minha mão enquanto eu chorava no escuro. Basta-nos olhar ao redor, reconhece-lo, ter vontade de questionar e registrar pequenos gestos, grandes experiências. Quem sabe assim, o escritor do maior romance sobre nosso presente tão fecundo e ao mesmo tempo tão terrível, pode ser você. J.M.N.

5 comentários:

Anônimo disse...

As lagrimas me acompanharam ao assistir o filme e ao ler teu texto. Urge romancear a vida.

Anônimo disse...

Oportuna sua cronica...em tempos de aplicativos como o Bang with friends, vejo que ha vida inteligente na net.

Anônimo disse...

Seu texto traduz seu encantamento da existência!
Bela crônica de um perspicaz observador do cotidiano.

Anônimo disse...

Ah, mas versos escritos cedo não são grande coisa!
Deveríamos esperar para escrever, e juntar senso e doçura por uma vida inteira, longa, se possível, e então, bem no fim, talvez pudéssemos escrever dez linhas que fossem boas. Pois versos não são, como pensam as pessoas, sentimentos (deles temos o bastante na juventude) - são experiências. Por causa de um único verso é preciso ver muitas cidades, pessoas e coisas, é preciso conhecer os animais, é preciso sentir como os pássaros voam e saber com que
gestos as pequenas flores se abrem pela manhã. É preciso ser capaz de recordar caminhos em regiões desconhecidas, encontros inesperados e despedidas que vemos se aproximar por longo tempo – dias de infância, ainda inexplicados, os pais que tínhamos de magoar quando
nos traziam um presente e não o entendíamos (era um presente para outro...), doenças de
infância que começam tão estranhamente, com tantas metamorfoses profundas e difíceis, dias em quartos quietos e reservados, e manhãs junto ao mar, sobretudo o mar, os mares, as
noites de viagem que passavam ruidosamente e voavam com todas as estrelas – e ainda não é
o bastante se precisamos pensar em tudo isso. É preciso ter lembranças de muitas noites de
amor, todas diferentes entre si, de gritos de mulheres dando à luz e de parturientes leves,
brancas, a dormir, que se fecham. Mas também é preciso ter estado sentado junto a
moribundos, é preciso ter estado sentado junto a mortos no quarto com a janela aberta e os
ruídos intermitentes. Mas ainda não basta ter recordações. É preciso ser capaz de esquecêlas
quando são muitas, e é preciso ter grande paciência de esperar que retornem. Pois elas
ainda não são recordações mesmas. Apenas quando elas se tornam sangue em nós, olhar e
gesto, anônimas e indistinguíveis de nós mesmos, só então poderá acontecer que numa hora
muito rara se levante e saia do meio delas a primeira palavra de um verso.
Rainer Maria Rilke, 2009.

Anônimo disse...

“E para que serve a arte? Para começar, podemos dizer que ela provoca, instiga e estimula nossos sentidos, descondicionando-os, isto é, retirando-os de uma ordem preestabelecida e sugerindo ampliadas possibilidades de viver e de se organizar no mundo”(CANTON, 2009, p.12)