quarta-feira, 14 de novembro de 2012

No dorso do tempo

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Compartilho com vocês o primeiro texto de outro livro que finalizei e que, em breve, como venho me prometendo há tanto tempo, estará impresso e circulando por ai.
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Já vão fundas no meu dentro caduco, aquelas tuas imagens. Tua pele não é mais pele. Um manto. Proteção para saudade que frequentemente rompe e a deixa escapar. Me deixa escapar. O que disseste em linhas tão duras não durou mais que o instante. E resta da frieza do teu ferro, apenas o tal bolero com o qual dançamos nosso amor no escuro. Sem futuro, como um câncer decidido e bastante espalhado. Fomos desde o início, início e fim.
Nosso amor sexagenário dos quinze anos e depois dos vinte. Repetido pela estirpe precedente dos insondáveis, meus ratos imundos – a família ultrapassada pelo escuro. Passeantes da memória e dos conluios feitos antes de mim para que eu não chegasse a dar certo. Para que eu não resultasse.
Fico feliz por terem falhado. É o que penso. Era o que desejava desde sempre.
Nosso amor de descuido, de rua, caminhante. Repetido em termos e prazos, nosso amor fazia seus passos pé ante pé com a virtude que não geramos, que não quisemos. Alavancado por oboés sonhados. E aos suspiros, o mar de azuis e lençóis nos cobrou caro a entrega, força bruta pelo que não sabíamos. Cansaço. Um punhado de missas enjoadas e confissões pretendidas.
Nosso amor não alcançou nada além de si mesmo.
Nosso amor de mais nada formado senão do magma incandescente da pouca idade, do muito uso.
Haveriam de nos por limites as três grandezas indissolúveis da vida: o tempo dos anos que rói tamborins e deixa o som – antes ardente – meio murcho, mais inseguro; a quilometragem do corpo em uso, inconstante e sem jeito como qualquer carne pronta para o consumo; e o dorso do mesmo tempo sobre o qual escorria nosso amor e nossa parceria, escangalhados por tanta incerteza.
Trombetas dos que se foram. Assovios salientes. É isso o que ouço. E tu? Onde acabam teus ouvidos? Eles cansaram?
Aquela última grandeza, a mais sequaz, longilínea dentre as nobrezas que não funcionaram, dentre a destreza que se cancelou pela escolha – a incrível semelhança do que nos separou e nos uniu – vai descolorindo.
Já soa a nada esta lembrança agora e mesmo assim tem força.
Nesta lembrança, em cuja profundidade mergulhou meu som, faço silêncio. Deste passado tão presente em cuja distância reclama minhas faltas, faço questão...
Faço questão de te dizer que não sei nada e não quero nada.
A licença da lua será usada para por traços quando for procedente pintar, quando chegar meu tempo de não poder concatenar as ideias. Assim direi o que não posso. Estarei arrependido do que não sou agora, aquela imagem que queres ver em meus atos tão desesperadamente.
Vou dizendo este sem jeito que são as coisas. Esse negócio mal fadado que foi nosso último beijo. Apenas para que lembres – não fui o primeiro a dar de ombros ao que nos vinha.
Não fui sequer, tão obstinadamente o que te queria.
Tímido, desejo apenas não ter mais idade, não ter peso. Desejo que não me venhas com meus erros listados uma a um. Eu sei exatamente o que eles são e o que fizeste depois me socorrer dentre muitos.
Se não tens mais falas, fica sentada ao lado. Eu também já fui apunhalado tantas vezes pelas costas que é quase sem pele que me despeço finalmente. É assim que as coisas são.
Preciso decretar o fim, inventar que foi tudo por acaso. Assim poderei passar para os autos do meu tempo. Emergir. Poder, sem tempo ou carne, corpo ou percurso, usar de novo o emblema de amado. Estatelado e surpreendente.
Estampado com muito cuidado no acabamento. Como se fosse uma imensa flor de cacto cosida inteirinha numa de minhas camisetas mais anis. J.M.N.

Um comentário:

Anônimo disse...

Caro José,

Li seu blog durante o fim de semana e não consegui parar. A internet precisa de espaços assim, com conteúdo de classe, de respeito. Dá para ver que vocês tem muito a mostrar.
Voltarei sempre.

Romano.