sábado, 26 de abril de 2008

Eu e a tarde

eduardjahelka

Foto: Eduard Jahelka

 

ESTA TARDE EU TE ESPEREI. Te esperei porque tinha certeza que vinhas. Que vinhas com aquele sorriso de garoto que fez arte. Que chegarias contando piadas ao porteiro, perguntando sobre o cachorro da vizinha, jogando-lhe elogios mentirosos – pequeno itinerário que percorrias antes de tornar-se meu dono.

Estava esperando que me desses um susto, pois nada anunciava a tua chegada. Não usas perfume e andas como se não pisasses no chão. Lembra que um dia te falei de meu desejo de ter um assoalho de madeira que rangesse? Fizeste pouco caso. A mim restou apenas o sexto sentido feminino.

Lembro que és bem diferente de mim. Não gostas de ser notado. Eu, ao mínimo telefonema teu, já penduro lençóis brancos no varal, para que quando chegues não tenhas dúvida que estou à tua espera. Largo a bolsa no sofá, forjando certa displicência para que penses que estou aprendendo contigo. Deixo pistas. Demarco o teu trajeto até meu quarto. Batons sobre a mesa, cheiro de feijão no ar, os teus cds com as capas trocadas e teus livros abertos para que fiques bravo e aperte o passo até o quarto.

Imaginei que chegarias como sempre. Sem bater. Andando bem devagar. O olhar silencioso me despindo à distância. Não me darias tempo para palavras ou suspiros. As nossas respirações se confundindo num diálogo sem nexo. A tua mão levemente no meu braço, colocando a quantidade certa de violência e amor para me preparar para aquele beijo que só tua boca tem. Aquele beijo que começa por me descobrir. Depois me decifrar. E depois de me decifrar, me traduzir. E depois de me traduzir, me deixar sem ar. E depois de me deixar sem ar, me virar do avesso como se fosse uma das tuas camisas cansadas. Nesse momento parece que morro. E te agradeço por isso, pois sei que logo depois que me tiras a vida, me tiras a roupa para me inventar novamente. Me faço então semente, para que me regues gemendo baixinho, meu jardineiro. Para que depois, observe a tarde inteira o meu lento desabrochar. Enquanto eu finjo ser a flor mais perfeita que um homem já inventou.

4 comentários:

Unknown disse...

Quando você escreve como uma mulher, passa a entendê-las melhor?É um texto muito denso e revelador, poderia ser recitado na abertura do nosso proximo seminário de psicanalise, juntamente com Vicença.. (já sei que você não vai querer...)
Parabens!

Anônimo disse...

[suspiro]

Lindo e devastador, Wagner.

Unknown disse...

MEu amigo, muito bom!!!!!

Sol disse...

passando por aqui pela primeira vez e gostei muito de seu texto..
muito bom!!